quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Última aula: amanhã , 17h30

Caros,
esta quinta-feira, dia 11, completamos o curso com uma aula-debate.
Um abraço,
Renato

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sigmund Freud - O Valor da Vida

A entrevista que reproduzo abaixo é, supostamente, a última dada por Sigmund Freud. Foi concedida em 1926 ao jornalista estudinedense George Viereck. Apesar de esta entrevista ter sido realizada em 1926 e Freud ter morrido 13 anos depois, não há relatos de outras entrevistas concedidas por Freud após 1926.

Em 1923, Freud foi diagnosticado com câncer na boca. Em 1926, já usava uma mandíbula mecânica e sentia dificuldade para falar. Isso talvez explique o fato de ele ter continuado a produzir material escrito (como "O Mal-Estar na Civilização", por exemplo), mas evitar falar. É possível também que esta seja a última entrevista que se conheça... Ou mesmo que esta não seja sua última entrevista, conforme se divulga. O que, na verdade, pouco importa.

O interessante é que este material foi considerado perdido por décadas, até que o boletim da Sigmund Freud Haus publicou uma versão condensada em 1976. O texto integral não fez muito sucesso na época, e pode ser lido no volume Psychoanalysis and The Future, uma edição especial do Journal of Psychology (New York, 1957).

A tradução para o português foi realizada por Paulo Cézar Souza.

O VALOR DA VIDA
Por George Viereck

Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.

Quem fala é o professor Sigmund Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos.

Eu havia visto o pai da psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte. Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou.

Parece que um tumor maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma prótese, para ele uma causa de constante irritação.

S. Freud: Detesto o meu maxilar mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção.

Talvez os deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos.

Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.

- Por quê – disse calmamente - deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com sua agruras chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?

George Sylvester Viereck: O senhor teve a fama, disse que Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo – com exceção da sua própria Universidade.

S. Freud: Se a Universidade de Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo importância insensata aos decimais.

A fama chega apenas quando morremos, e francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. Minha modéstia não e virtude.

George Sylvester Viereck: Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?

S. Freud: Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não e certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, o que havia poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha fortuna.

Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que florescia.

S. Freud: Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto.

George Sylvester Viereck: Então o senhor é, afinal, um profundo pessimista?

S. Freud: Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.

George Sylvester Viereck: O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?

S. Freud: Não penso nisso. Tudo o que vive perece. Por que deveria o homem construir uma exceção?

George Sylvester Viereck: Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem, em outras palavras, desejo de imortalidade?

S. Freud: Sinceramente não. Se a gente reconhece os motivos egoístas por trás de conduta humana, não tem o mínimo desejo de voltar a vida, movendo-se num círculo, seria ainda a mesma.

Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria, sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro.

Pelo que me toca estou perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida excessivamente me parece absurdo.

George Sylvester Viereck: Bernard Shaw sustenta que vivemos muito pouco, disse eu. Ele acha que o homem pode prolongar a vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução. Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.

- É possível, respondeu Freud, que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer.

Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição.

Do mesmo modo com um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós.

A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer.

No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante.

Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção.

Viereck: Isto é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.

S.Freud: A humanidade não escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora no final resulte mais forte.

Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte, não fosse por seu aliado dentro de nós.

Neste sentido acrescentou Freud com um sorriso, pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.

Estava ficando frio no jardim.

Prosseguimos a conversa no gabinete.

Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa, com a caligrafia clara de Freud.

George Sylvester Viereck: Em que o senhor está trabalhando?

S. Freud: Estou escrevendo uma defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova verdade no começo. Depois procuram monopoliza-la.

George Sylvester Viereck: O senhor teve muito apoio dos leigos?

S. Freud: Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.

George Sylvester Viereck: O senhor está praticando muito psicanálise?

S. Freud: Certamente. Neste momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos psíquicos de um interessante novo paciente.

Minha filha também é psicanalista, como você vê...

Nesse ponto apareceu Miss Anna Freud acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições inconfundivelmente anglo-saxonicas.

George Sylvester Viereck: O senhor já analisou a si mesmo?

S. Freud: Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros.

O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.

George Sylvester Viereck: Minha impressão, observei, é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da caridade cristão. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos fazer compreender. "Tout comprec'est tout pardonner".

Pelo contrário! – bravejou Freud, suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu. Compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância com o mal não e de maneira alguma um corolário do conhecimento.

Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, por que ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Una herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça.

Minha língua, ele me explicou, é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.

Fiquei algo desapontado com esta observação.

Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas, além de qualquer preconceito de raças que ele deveria ser imune a qualquer rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira, tornava o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse por seu calcanhar!

Viereck: Fico contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que também o senhor demonstre que é um mortal!

S. Freud: Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência, são também a fonte de nossa força.

Viereck: Imagino quais seriam os meus complexos!

S. Freud: Uma análise séria dura ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos anos de sua vida à “caça aos leões”. Você procurou sempre as pessoas de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand, Foch, Joffre, Georg Bernard Shaw...

Viereck: É parte do meu trabalho.

S. Freud: Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração. Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do seu “complexo do pai”.

(Neguei veementemente a afirmação de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo impulso que me levou a ele. Gostaria, observei após um momento, de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através dos seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto, receio ser muito informando sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia, ou tentaria antecipar suas intenções).

S. Freud: A inteligência num paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.

(Neste ponto o mestre da psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva segurança do paciente sob o seu escrutínio).

Viereck: Por vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o criminoso e o animal.

S. Freud: Que objeção pode haver contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.

Viereck: Por quê?

S. Freud: Porque são tão mais simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais desagradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer. As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos nossos cães nomes de heróis com Aquiles e Heitor.

Viereck: Meu cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.

S. Freud: (sorrindo) Fico contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de Édipo!

Viereck: Mesmo o senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.

S. Freud: De maneira alguma. A psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou. modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.

Viereck: Ao menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. A cada dia alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da condução humana mais intrigante e mais contraditório.

S. Freud: A psicanálise pelo menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.

Viereck: Alguns dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, se apegam a cada pronunciamento que sai da sua boca.

S. Freud: A vida muda. A psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência.

Viereck: A estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus fundamentos – a teoria do “deslocamento”, da “sexualidade infantil”, do “simbolismo dos sonhos”, etc... – parecem permanentes.

S. Freud: Eu repito, porém, que nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes.

Viereck: O senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?

S. Freud: Respondo com as palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: “Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo” (“Yet all were lacking, if sex were lacking”). Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que está “além” do prazer – a morte, a negociação da vida. Este desejo explica por que alguns homens amam a dor – como um passo para o aniquilamento!Explica por que os poetas agradecem a

Whatever gods there be,
That no life lives forever
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.

(“Quaisquer deuses que existam/Que a vida nenhuma viva para sempre/Que os mortos jamais se levantem /e também o rio mais cansado/Deságüe tranqüilo no mar”).

Viereck: Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele considera o sexo desinteressante.

S. Freud: (sorrindo) Shaw não compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor de Júlio César – talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a a uma insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor, para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em uma espécie de autodefesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade e você certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a perpetuação.

Viereck: O senhor, sem dúvidas, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.

S. Freud: Também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O Zaratustra E diz: “A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura, profundamente eternidade”. A psicanálise, pode ser menos amplamente discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência na literatura é imensa, porém, Thomas Mann e Hugo von Hafmannsthak muito devem a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um cientista.

Vieireck: O senhor não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes Harvrey O’Higgins e outros se fazem de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O’Neill e Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. “A The Silver Cord”, por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.

S. Freud: Eu sei e apresento o cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A “Clark University” concedeu-me um diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são julgadores inteligentes, raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos e ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise. Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho para o psicanalista É sempre um empecilho, quando certas concepções científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro estudioso.

(Freud tem que dizer a verdade a qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Hasburgos. Acompanhada da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste, ao dar o seu adeus).

S. Freud: Não me faça parecer um pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo. Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros.

(O apito de meu trem soou na noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na distância).




terça-feira, 2 de novembro de 2010

A paz é possível?

UTOPIA E REALISMO EM SIGMUND FREUD - CARTAS A ALBERT EINSTEIN

O texto que se segue reproduz a maior parte da correspondência trocada entre Einstein e Sigmund Freud no ano de 1932, véspera da subida ao poder do Nazismo. Trata-se de um texto pertinente aos nossos estudos de utopia e realismo, e vale salientar a proximidade dos argumentos de Freud com os de Schopenhauer: a civilização não soluciona os males, mas é o mal menor, o "mal administrável" - o que claramente justifica a inserção de Freud no rol dos "realistas" em contraposição aos "utopistas".

CARTA DE EINSTEIN:

Caro senhor Freud,

(...) Existe alguma possibilidade de dirigir a evolução psíquica dos homens de modo que se tornem mais capazes de resistir às psicoses do ódio e da destruição?

Muito cordialmente,
Seu Albert Einstein.

RESPOSTA DE FREUD:

Caro senhor Einstein,

(...) O senhor se surpreende que seja tão fácil inflamar os homens para a guerra, e presume que neles exista efetivamente algo, uma pulsão para o ódio e para a destruição, que está pronto a acolher uma tal instigação. Só posso concordar sem reservas com o senhor. Nós acreditamos na existência de tal pulsão e nos últimos anos tentamos justamente estudar as suas manifestações...

Nós presumimos que as pulsões do homem sejam somente de duas espécies: aquelas que tendem a conservar e unir, por nós chamadas de eróticas (exatamente no sentido em que Platão usa o termo Eros no Banquete) ou de sexuais, ampliando intencionalmente o conceito popular de sexualidade; e aquelas que tendem a destruir e a matar; estas últimas nós as compreendemos todas na denominação de pulsão agressiva ou destrutiva.

Como o senhor vê, trata-se apenas propriamente da elucidação teórica da contraposição entre amor e ódio, universalmente conhecida, e talvez originariamente conexa à polaridade de atração e repulsão que ocorre também no seu campo de estudos.

Não nos peça agora para passar muito rapidamente aos valores bem e mal. Ambas as pulsões são igualmente indispensáveis, porque os fenômenos da vida dependem do seu concurso e da sua oposição.

Ora, parece que quase nunca uma pulsão de um tipo pode agir isoladamente, ela é sempre conexa (ligada, como nós dizemos) a uma certa acumulação da contraparte, que modifica a sua meta ou, às vezes, subordina a chegada dessa última a determinadas condições.

Assim, por exemplo, a pulsão de autoconservação é certamente erótica, mas isso não elimina que deva recorrer à agressividade para realizar o que se propõe. Do mesmo modo, a pulsão amorosa, voltada aos objetos, necessita de um quid da pulsão de apropriação se realmente quiser se apossar do próprio objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões nas suas manifestações fez com que por muito tempo nós não conseguíssemos identificá-las.

As ações humanas estão sujeitas também a uma outra complicação. É muito raro que a ação seja obra do movimento de uma única pulsão, o qual por outro lado já deve ser uma combinação de Eros e destruição. Normalmente, devem intervir muitos motivos semelhantemente estruturados para tornar a ação possível... Portanto, quando os homens são incitados à guerra, é possível que se desperte neles toda uma série de motivos nobres e vulgares, sobre os quais de alguns se fala abertamente e outros são omitidos. Não é o caso enumerá-los todos.

O prazer de agredir e destruir é certamente um deles; inumeráveis crueldades na história e na vida cotidiana confirmam a existência e a força dos prazeres acima citados. O fato de esses impulsos destrutivos estarem misturados com outros impulsos, eróticos e ideais, facilita naturalmente a sua satisfação.

Às vezes, quando ouvimos falar das atrocidades da história, temos a impressão de que os motivos ideais serviram de mero biombo aos desejos de destruição; outras vezes, por exemplo, pelas crueldades da Santa Inquisição, de que os motivos ideais foram proeminentes na consciência, ao passo que os motivos destrutivos produziram nos primeiros um fortalecimento inconsciente. Ambos os casos são possíveis...

Gostaria de deter-me um pouco mais na pulsão destruitiva, menos conhecida do que a sua importância exigiria. Com um pouco de especulação persuadimo-nos de que ela opera em todo ser vivente e que a sua aspiração é levá-lo à ruína, reconduzir a vida à condição de matéria inanimada. Com toda a seriedade lhe é condizente o nome de pulsão de morte, enquanto as pulsões eróticas representam esforços em direção à vida.

A pulsão de morte torna-se pulsão destrutiva quando, com a ajuda de determinados órgãos, se volta para o exterior, contra os objetos. Por assim dizer, o ser vivente tanto protege a própria vida quanto destrói uma estranha.

Todavia, uma parte da pulsão de morte permanece ativa no interior do ser vivente e nós tentamos extrair toda uma série de fenômenos normais e patológicos dessa interiorização da pulsão destrutiva.

Chegamos mesmo à heresia de explicar a origem da nossa consciência moral com essa volta da agressividade para o interior. Note que não é absolutamente indiferente se esse processo é levado longe demais; nesse caso, produz um efeito imediatamente malsão.

Ao contrário, esse voltar das pulsões destrutivas para o mundo externo alivia o ser vivente e não pode não produzir um efeito benéfico. Isso serve como desculpa biológica para todos os impulsos execráveis e perniciosos contra os quais nós lutamos.

Deve-se admitir que eles estão mais próximos da natureza do que a resistência com que nos opomos aos instintos e para a qual ainda devemos encontrar explicação. O senhor talvez tenha a impressão de que as nossas teorias são uma espécie de mitologia, nem mesmo feliz, na verdade. Mas toda ciência natural não se encaminha talvez para uma espécie de mitologia? Não é assim também para o senhor, no campo da Física?

Para os escopos imediatos a que nos propusemos, do que foi dito tiramos a conclusão de que não existe esperança de poder suprimir as inclinações agressivas dos homens.

Diz-se que em regiões felizes da Terra, onde a natureza oferece em profusão tudo de que o homem necessita, existem povos cuja vida transcorre mansamente, entre os quais a coerção e a agressão são desconhecidas. Não acredito muito; gostaria de saber mais a respeito dessas felizes criaturas...

Partindo da nossa mitológica doutrina das pulsões, chegamos facilmente a uma fórmula para definir as vias indiretas de luta contra a guerra. Se a propensão à guerra é um produto da pulsão destrutiva, é óbvio recorrer, contra ela, ao antagonista dessa pulsão: o Eros. Tudo aquilo que cria vínculos emotivos entre os homens deve agir contra a guerra. Esses vínculos podem ser de duas espécies.

Em primeiro lugar, relações que, mesmo desprovidas de objetivos sexuais, se pareçam com aquelas que se mantém com um objeto de amor. A psicanálise não precisa se envergonhar se aqui fala de amor, porque a religião diz a mesma coisa: ama o teu próximo como a ti mesmo. Ora, essa é uma exigência fácil de ser formulada, mas difícil de realizar.

Um outro tipo de vínculo emotivo é aquele que se estabelece mediante identificação. Tudo aquilo que provoca solidariedade significativa entre os homens desperta sentimentos comuns deste gênero: as identificações. Sobre esta repousa em grande parte a organização da sociedade humana...

Faz parte da desigualdade inata e não eliminável entre os homens que eles se distinguem em chefes e seguidores. Os seguidores representam a grande maioria, necessitam de uma autoridade que tome decisões por eles, à qual geralmente se submetem incondicionalmente...

O ideal seria naturalmente uma comunidade humana que tivesse submetido a vida de suas pulsões à ditadura da razão. Nada mais poderia produzir uma união tão perfeita e tenaz entre os homens, capaz de resistir até mesmo à renúncia a recíprocos vínculos emotivos. Mas, muito provavelmente, esta é uma esperança utópica...

Todavia, gostaria de tratar ainda de um problema, que no seu escrito o senhor não levanta e que me interessa particularmente. Por que nos indignamos tanto com a guerra, o senhor e eu, assim como muitos outros, por que não a consideramos como uma das muitas calamidades penosas da vida? A guerra parece, conforme a natureza, plenamente justificada biologicamente, e na prática muito pouco evitável...

Há tempos imemoráveis a humanidade está submetida ao processo do civilizamento (sei que outros preferem denominar este processo de civilização). Devemos a esse processo o melhor daquilo em que nos tornamos e boa parte dos nossos males. As suas causas e origens são obscuras, o seu resultado incerto, alguns dos seus caracteres facilmente compreensíveis.

Talvez ele leve o gênero humano à extinção, já que de diversas maneiras prejudica a função sexual, e hoje os incultos e as camadas atrasadas da população multiplicam-se mais rapidamente do que as camadas sociais de elevada cultura.

Talvez esse processo seja comparável à domesticação de certas espécies de animais; sem dúvida, comporta modificações físicas; todavia, ainda não nos familiarizamos com a idéia de que o civilizamento seja um processo orgânico de tal espécie.

As modificações psíquicas que advêm com o civilizamento são, ao contrário, vistosas e absolutamente inequívocas. Elas consistem num deslocamento progressivo das metas das pulsões e numa restrição dos movimentos das pulsões.

Sensações que para nossos progenitores eram muito prazerosas se tornaram, para nós, indiferentes ou mesmo intoleráveis; existem razões orgânicas para o fato de que as nossas exigências ideais, éticas e estéticas tenham mudado. De todos os caracteres psicológicos da civilização, dois parecem mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que começa a dominar a vida das pulsões, e a interiorização da agressividade, com todas as vantagens e perigos que daí decorrem.

Pois bem, como a guerra contraria do modo mais estridente toda atitude psíquica que nos é imposta pelo processo de civilizamento, temos necessariamente que nos rebelar contra ela: simplesmente não a suportamos mais.

Não se trata apenas de uma rejeição intelectual e afetiva: para nós, pacifistas, trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincracia elevada, por assim dizer, ao máximo nível. E, parece-me, com efeito, que as degradações estéticas da guerra contribuem para determinar a nossa rejeição quase que na mesma medida que as suas atrocidades.

Quanto teremos de esperar para que os outros também se tornem pacifistas? Não se pode dizer, mas talvez não seja utópico esperar que a influência de dois fatores (uma atitude mais civil e o justificado temor de uma guerra futura) ponha fim às guerras em um futuro próximo. Se por vias diretas ou indiretas, não podemos adivinhar. Nesse meio tempo, podemos dizer uma coisa: tudo o que favorece o civilizamento trabalha também contra a guerra.

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Texto extraído de Antologia Ilustrada da Filosofia - Ubaldo Nicola - Editora Globo, 2005.