terça-feira, 2 de novembro de 2010

A paz é possível?

UTOPIA E REALISMO EM SIGMUND FREUD - CARTAS A ALBERT EINSTEIN

O texto que se segue reproduz a maior parte da correspondência trocada entre Einstein e Sigmund Freud no ano de 1932, véspera da subida ao poder do Nazismo. Trata-se de um texto pertinente aos nossos estudos de utopia e realismo, e vale salientar a proximidade dos argumentos de Freud com os de Schopenhauer: a civilização não soluciona os males, mas é o mal menor, o "mal administrável" - o que claramente justifica a inserção de Freud no rol dos "realistas" em contraposição aos "utopistas".

CARTA DE EINSTEIN:

Caro senhor Freud,

(...) Existe alguma possibilidade de dirigir a evolução psíquica dos homens de modo que se tornem mais capazes de resistir às psicoses do ódio e da destruição?

Muito cordialmente,
Seu Albert Einstein.

RESPOSTA DE FREUD:

Caro senhor Einstein,

(...) O senhor se surpreende que seja tão fácil inflamar os homens para a guerra, e presume que neles exista efetivamente algo, uma pulsão para o ódio e para a destruição, que está pronto a acolher uma tal instigação. Só posso concordar sem reservas com o senhor. Nós acreditamos na existência de tal pulsão e nos últimos anos tentamos justamente estudar as suas manifestações...

Nós presumimos que as pulsões do homem sejam somente de duas espécies: aquelas que tendem a conservar e unir, por nós chamadas de eróticas (exatamente no sentido em que Platão usa o termo Eros no Banquete) ou de sexuais, ampliando intencionalmente o conceito popular de sexualidade; e aquelas que tendem a destruir e a matar; estas últimas nós as compreendemos todas na denominação de pulsão agressiva ou destrutiva.

Como o senhor vê, trata-se apenas propriamente da elucidação teórica da contraposição entre amor e ódio, universalmente conhecida, e talvez originariamente conexa à polaridade de atração e repulsão que ocorre também no seu campo de estudos.

Não nos peça agora para passar muito rapidamente aos valores bem e mal. Ambas as pulsões são igualmente indispensáveis, porque os fenômenos da vida dependem do seu concurso e da sua oposição.

Ora, parece que quase nunca uma pulsão de um tipo pode agir isoladamente, ela é sempre conexa (ligada, como nós dizemos) a uma certa acumulação da contraparte, que modifica a sua meta ou, às vezes, subordina a chegada dessa última a determinadas condições.

Assim, por exemplo, a pulsão de autoconservação é certamente erótica, mas isso não elimina que deva recorrer à agressividade para realizar o que se propõe. Do mesmo modo, a pulsão amorosa, voltada aos objetos, necessita de um quid da pulsão de apropriação se realmente quiser se apossar do próprio objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões nas suas manifestações fez com que por muito tempo nós não conseguíssemos identificá-las.

As ações humanas estão sujeitas também a uma outra complicação. É muito raro que a ação seja obra do movimento de uma única pulsão, o qual por outro lado já deve ser uma combinação de Eros e destruição. Normalmente, devem intervir muitos motivos semelhantemente estruturados para tornar a ação possível... Portanto, quando os homens são incitados à guerra, é possível que se desperte neles toda uma série de motivos nobres e vulgares, sobre os quais de alguns se fala abertamente e outros são omitidos. Não é o caso enumerá-los todos.

O prazer de agredir e destruir é certamente um deles; inumeráveis crueldades na história e na vida cotidiana confirmam a existência e a força dos prazeres acima citados. O fato de esses impulsos destrutivos estarem misturados com outros impulsos, eróticos e ideais, facilita naturalmente a sua satisfação.

Às vezes, quando ouvimos falar das atrocidades da história, temos a impressão de que os motivos ideais serviram de mero biombo aos desejos de destruição; outras vezes, por exemplo, pelas crueldades da Santa Inquisição, de que os motivos ideais foram proeminentes na consciência, ao passo que os motivos destrutivos produziram nos primeiros um fortalecimento inconsciente. Ambos os casos são possíveis...

Gostaria de deter-me um pouco mais na pulsão destruitiva, menos conhecida do que a sua importância exigiria. Com um pouco de especulação persuadimo-nos de que ela opera em todo ser vivente e que a sua aspiração é levá-lo à ruína, reconduzir a vida à condição de matéria inanimada. Com toda a seriedade lhe é condizente o nome de pulsão de morte, enquanto as pulsões eróticas representam esforços em direção à vida.

A pulsão de morte torna-se pulsão destrutiva quando, com a ajuda de determinados órgãos, se volta para o exterior, contra os objetos. Por assim dizer, o ser vivente tanto protege a própria vida quanto destrói uma estranha.

Todavia, uma parte da pulsão de morte permanece ativa no interior do ser vivente e nós tentamos extrair toda uma série de fenômenos normais e patológicos dessa interiorização da pulsão destrutiva.

Chegamos mesmo à heresia de explicar a origem da nossa consciência moral com essa volta da agressividade para o interior. Note que não é absolutamente indiferente se esse processo é levado longe demais; nesse caso, produz um efeito imediatamente malsão.

Ao contrário, esse voltar das pulsões destrutivas para o mundo externo alivia o ser vivente e não pode não produzir um efeito benéfico. Isso serve como desculpa biológica para todos os impulsos execráveis e perniciosos contra os quais nós lutamos.

Deve-se admitir que eles estão mais próximos da natureza do que a resistência com que nos opomos aos instintos e para a qual ainda devemos encontrar explicação. O senhor talvez tenha a impressão de que as nossas teorias são uma espécie de mitologia, nem mesmo feliz, na verdade. Mas toda ciência natural não se encaminha talvez para uma espécie de mitologia? Não é assim também para o senhor, no campo da Física?

Para os escopos imediatos a que nos propusemos, do que foi dito tiramos a conclusão de que não existe esperança de poder suprimir as inclinações agressivas dos homens.

Diz-se que em regiões felizes da Terra, onde a natureza oferece em profusão tudo de que o homem necessita, existem povos cuja vida transcorre mansamente, entre os quais a coerção e a agressão são desconhecidas. Não acredito muito; gostaria de saber mais a respeito dessas felizes criaturas...

Partindo da nossa mitológica doutrina das pulsões, chegamos facilmente a uma fórmula para definir as vias indiretas de luta contra a guerra. Se a propensão à guerra é um produto da pulsão destrutiva, é óbvio recorrer, contra ela, ao antagonista dessa pulsão: o Eros. Tudo aquilo que cria vínculos emotivos entre os homens deve agir contra a guerra. Esses vínculos podem ser de duas espécies.

Em primeiro lugar, relações que, mesmo desprovidas de objetivos sexuais, se pareçam com aquelas que se mantém com um objeto de amor. A psicanálise não precisa se envergonhar se aqui fala de amor, porque a religião diz a mesma coisa: ama o teu próximo como a ti mesmo. Ora, essa é uma exigência fácil de ser formulada, mas difícil de realizar.

Um outro tipo de vínculo emotivo é aquele que se estabelece mediante identificação. Tudo aquilo que provoca solidariedade significativa entre os homens desperta sentimentos comuns deste gênero: as identificações. Sobre esta repousa em grande parte a organização da sociedade humana...

Faz parte da desigualdade inata e não eliminável entre os homens que eles se distinguem em chefes e seguidores. Os seguidores representam a grande maioria, necessitam de uma autoridade que tome decisões por eles, à qual geralmente se submetem incondicionalmente...

O ideal seria naturalmente uma comunidade humana que tivesse submetido a vida de suas pulsões à ditadura da razão. Nada mais poderia produzir uma união tão perfeita e tenaz entre os homens, capaz de resistir até mesmo à renúncia a recíprocos vínculos emotivos. Mas, muito provavelmente, esta é uma esperança utópica...

Todavia, gostaria de tratar ainda de um problema, que no seu escrito o senhor não levanta e que me interessa particularmente. Por que nos indignamos tanto com a guerra, o senhor e eu, assim como muitos outros, por que não a consideramos como uma das muitas calamidades penosas da vida? A guerra parece, conforme a natureza, plenamente justificada biologicamente, e na prática muito pouco evitável...

Há tempos imemoráveis a humanidade está submetida ao processo do civilizamento (sei que outros preferem denominar este processo de civilização). Devemos a esse processo o melhor daquilo em que nos tornamos e boa parte dos nossos males. As suas causas e origens são obscuras, o seu resultado incerto, alguns dos seus caracteres facilmente compreensíveis.

Talvez ele leve o gênero humano à extinção, já que de diversas maneiras prejudica a função sexual, e hoje os incultos e as camadas atrasadas da população multiplicam-se mais rapidamente do que as camadas sociais de elevada cultura.

Talvez esse processo seja comparável à domesticação de certas espécies de animais; sem dúvida, comporta modificações físicas; todavia, ainda não nos familiarizamos com a idéia de que o civilizamento seja um processo orgânico de tal espécie.

As modificações psíquicas que advêm com o civilizamento são, ao contrário, vistosas e absolutamente inequívocas. Elas consistem num deslocamento progressivo das metas das pulsões e numa restrição dos movimentos das pulsões.

Sensações que para nossos progenitores eram muito prazerosas se tornaram, para nós, indiferentes ou mesmo intoleráveis; existem razões orgânicas para o fato de que as nossas exigências ideais, éticas e estéticas tenham mudado. De todos os caracteres psicológicos da civilização, dois parecem mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que começa a dominar a vida das pulsões, e a interiorização da agressividade, com todas as vantagens e perigos que daí decorrem.

Pois bem, como a guerra contraria do modo mais estridente toda atitude psíquica que nos é imposta pelo processo de civilizamento, temos necessariamente que nos rebelar contra ela: simplesmente não a suportamos mais.

Não se trata apenas de uma rejeição intelectual e afetiva: para nós, pacifistas, trata-se de uma intolerância constitucional, de uma idiossincracia elevada, por assim dizer, ao máximo nível. E, parece-me, com efeito, que as degradações estéticas da guerra contribuem para determinar a nossa rejeição quase que na mesma medida que as suas atrocidades.

Quanto teremos de esperar para que os outros também se tornem pacifistas? Não se pode dizer, mas talvez não seja utópico esperar que a influência de dois fatores (uma atitude mais civil e o justificado temor de uma guerra futura) ponha fim às guerras em um futuro próximo. Se por vias diretas ou indiretas, não podemos adivinhar. Nesse meio tempo, podemos dizer uma coisa: tudo o que favorece o civilizamento trabalha também contra a guerra.

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Texto extraído de Antologia Ilustrada da Filosofia - Ubaldo Nicola - Editora Globo, 2005.

5 comentários:

  1. Olá a todos,

    não consegui postar no blog, por isso escrevo neste espaço para comentário. Gostaria de saber se alguém achou o texto de Freud para a aula em formato pdf e poderia me passar o link pois eu não consegui encontrá-lo.

    Muito obrigado, André

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  2. André, eu não anotei qual o nome do texto, mas se você me disser qual é eu terei prazer em procurá-lo pra você.

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  3. O nome do texto que o professor sugeriu é "Introdução à psicanálise", mas eu procurei no google a cópia em PDF e não encontrei.

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  4. André, eu encontrei um link para o livro, mas em inglês:

    http://www.onread.com/book/A-General-Introduction-to-Psychoanalysis-173211

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  5. Em tempo: para quem se interessar em ler as cartas completas trocadas por Einstein e Freud, segue um link.


    http://www.scribd.com/doc/7182942/Einstein-e-Freud-Por-Que-a-Guerra-Cartas

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