terça-feira, 28 de setembro de 2010

George Orwell pela... Folha

http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/805397-autor-de-1984-era-misogino-e-homofobico-revela-livro.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u683998.shtml

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Aula desta 5a feira

Nesta aula, trataremos tanto de 1984 quanto de Admirável Mundo Novo.
A aula começará às 16h.
Bibliografia: os dois livros, bem como meu artigo "Os amantes contra o poder", in Adauto Novaes (org.), O olhar.
Peço que os projetos do trabalho sejam encaminhados até a 3a feira, dia 28, por favor.
Obrigado,
Renato

domingo, 19 de setembro de 2010

A história das coisas

O vídeo abaixo, apresentado por Anne Leonard e dublado em português, expõe detalhadamente o sério problema da obsolescência programada. Vale se dar estes 21 minutos para assisti-lo.

http://www.youtube.com/watch?v=lgmTfPzLl4E

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Livros para os interessados: dia 23

Na próxima 5a, dia 23, a partir das 14h, os alunos que quiserem poderão retirar os livros de sua preferência que estejam sobre a mesa de minha sala de trabalho (ao lado da secretaria). São 200 a 300 livros bons, que não vou mais utilizar, e que podem interessar a vcs. É uma doação!
Não há limite para quantos livros queiram levar, portanto os interessados levem sacolas ou caixas.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Considerações sobre as duas instâncias do desejo

Alexey, gostaria de dividir algumas reflexões sobre seu ótimo texto.

Não sei se concordo com sua distinção entre desejo e vontade. Preciso pensar (e ler) mais sobre isso, mas me parece que há tantas coisas envolvidas no “desejo” ou na “vontade” que, tendo a concordar com Nietzsche: seria somente uma questão de linguagem tratar esses conceitos como algo único. Nesse sentido, para poder falar sobre as coisas, seria lícito recorrer à categoria de unidade, desde que se admita que aquilo de que estamos tratando somente como palavra constitui uma unidade (Para além de bem e mal, “Dos preconceitos dos Filósofos”, § 19). Ainda que para poder discorrer sobre algo, num certo sentido, nos vejamos forçados a unificar pluralidades sob um conceito, há que se reconhecer que se trata de uma limitação inerente à linguagem. Diversamente disso, a tentativa de aplicar este diagnosticado fenômeno lingüístico às próprias coisas ocasionaria “conclusões” equivocadas, preconceituosas (nas palavras de Nietzsche). Desta situação, nem mesmo a ciência estaria a salvo, posto que também dependa da linguagem para se expressar: “toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem(Para a genealogia da Moral, Primeira dissertação, § 13).

Há tantas coisas diferentes, pulsões diferentes, contraditórias até, naquilo que dizemos que é nosso desejo ou nossa vontade, que é impossível analisar como uma única pulsão, um único sentimento: o “desejo”, a “vontade”. Mesmo Nietzsche, quando lança mão destas palavras, sempre coloca um complemento: vontade de potência, vontade de verdade, vontade de sistema. O desejo é múltiplo.

Quando você diz que continua desejando estudar filosofia (desejo constante) e que o desejo satisfeito por um objeto provoca tédio (desejo que se extingue), estaríamos tratando de duas situações bastante diferentes. Talvez, você não conseguisse desejar constantemente estudar um único texto filosófico por toda vida. Nesse caso, a “chama” do desejo se apagaria.

Ao tratar da linguagem e das coisas operaríamos em níveis diferentes. A análise de Schopenhauer (cuja filosofia, confesso, conheço pouquíssimo) consideraria a palavra “vontade” como algo único, como um ímpeto humano, justamente por ignorar toda pluralidade - sentir, pensar, afetos (Para além de bem e mal, “Dos preconceitos dos filósofos”, § 19) - envolvida no que chama de “vontade”. Esse “querer” seria algo que, apenas como palavra, constituiria uma unidade. Essa espécie de “salto ilícito” de um nível para outro, a saber, do nível da linguagem para o nível da existência, permitiria aos filósofos falar da vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo. A Gloria costumava fazer uma analogia divertida: vontade seria como um bolo, composta de vários ingredientes...

Talvez, ainda por conta destes “saltos ilícitos” entre linguagem e “realidade”, tenderíamos a observar e analisar o “mundo” isolando fatos como “entidades independentes”. Porém, o agir humano seria diferente disso: não se trata de uma seqüência de fatos com intervalos vazios que separam um fato de outro, mas de um fluxo constante, emaranhado. Por exemplo, a liberdade da vontade não passaria de uma crença (legitimada e cristalizada pela linguagem), pois “pressupõe que cada ação singular é isolada e indivisível” (O andarilho e sua sombra, § 11).

De modo algum afirmo que tais problemáticas invalidem quaisquer análises. Contudo, creio ser pertinente considerá-las quando se reflete sobre o desejo, a vontade.

Posso ter entendido mal (Sorry! Se este for o caso), mas, em algum momento, sua análise soou como algo “linear” (e fundamentalmente racional?): desejo – consigo – passo para o próximo desejo; desejo – consigo – passo para o próximo desejo etc. Nesse sentido, sua pergunta “Qual o sentido em viver se todos os desejos estão realizados?” resumiria o sentido da vida ao saciar aquilo que desejamos (racionalmente?) e penso que esta seja uma visão reducionista de qual seja o sentido (se existe, seria um ou muitos?) da vida. Há tantas outras coisas que poderiam dar sentido ao viver. E aquilo que o desejar não dá conta de explicar? E aquilo que não desejamos, acontece e transforma a vida? Estaria mais para se tornar o que se é sem ter desejado, sem seguir uma meta desejada, sem ter querido, pressentido...

Outro problema dessa linearidade seria ignorar os graus, as nuances. Ainda que concordássemos que a vida se resume em desejar e estar satisfeito, dizer que "a vida oscila então como um pêndulo, da esquerda para a direita, do sofrimento para o tédio" é operar exclusivamente com dicotomias absolutas. Muitas vezes, estaríamos em algum grau intermediário entre estes dois estados: nem 100% sofrendo por um desejo insatisfeito, nem 100% entediados por aquilo que conseguimos, mas o pêndulo só pára nos dois extremos. E o percurso do pêndulo? E as gradações entre os estados?

Finalmente, a esperança. ἐλπίς/elpís [ou ελπίδα. De ελπω, elpo, que é uma palavra primária (antecipar, geralmente com prazer); expectativa (abstrata ou concretamente) ou confiança: – fé, esperança] é um dos males da caixa de Pandora. Das diversas interpretações acerca da consideração grega de esperança como mal, uma das que mais me agrada afirma, grosso modo, que por conta desta antecipação implicada na esperança, os homens estariam sujeitos ao medo irracional. Assim, embora padeçam em virtude dos males que escaparam da caixa, foram poupados do pior: a expectativa antecipada destes mesmos males. Mas deixando de lado juízos de valor gregos acerca da esperança e voltando ao seu texto, tenho a sensação de que esperança talvez indique justamente o contrário do que se supõe do desejo. Ao passo que desejar, ter vontade parece exortar à ação, ao movimento no sentido de buscar satisfação, a paralisação da ação parece inerente à esperança. Tenho esperança, tenho expectativa, confiança em algum acontecimento, então, aguardo, paro... esperançosamente, espero.

Um abraço

Ana

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

As duas instâncias do desejo

Em nosso último encontro, na medida em que o professor Renato discorria sobre a temática do desejo e do prazer em Reich, vinha-me à mente Proust, em seu "Em Busca do Tempo Perdido" e a relação conflituosa com o desejo por Albertine. Se Albertine está ausente, ele sofre e deseja ardentemente seu retorno. Mas quando ela lá está, ele se entedia. Não é preciso ler Proust para entender esta dinâmica. Qualquer pessoa pode fazer o exercício de se lembrar de algo que deseja muito e intensamente, recordar-se da sensação de profunda alegria por conseguir o que se almejava, e dar-se conta do imenso tédio que tomou o lugar da alegria com o tempo. Pode ser um amor, um trabalho, um objeto, tanto faz: "matar o desejo" dá lugar apenas a outro desejo. Por isso, soam-me tão esquisitos os votos de aniversário: "espero que você realize todos os seus desejos" - se isso ocorresse de fato, o que haveria depois? Qual o sentido em viver se todos os desejos estão realizados?

Seria esta a essência do desejo? Amar enquanto ausência e nos entediarmos na presença? Schopenhauer, se tivesse lido Proust, provavelmente tomaria seus romances como exemplo. Em A Vida como Vontade e Representação, escreve o filósofo: "A vida oscila então como um pêndulo, da esquerda para a direita, do sofrimento para o tédio". O sofrimento é o desejo do que não se tem, e quando se tem eis o tédio. Eu acho tudo isso muito budista, mas, enfim, Schopenhauer bebeu diretamente desta fonte (e assumiu). E, penso eu, Reich também, com suas idéias aparentemente doidas e meio hippies sobre "energia vital" (doidas, é claro, a partir de uma perspectiva ocidental). Eu sou muito inclinado a crer que os utopistas e suas teses, ainda que incidentalmente, convergem para o pensamento oriental (acho que já deu pra perceber que eu penso isso). A utopia nasce como o Sol, no oriente... o problema é quando chega no oeste!

Se o desejo é falta, é ausência, as perspectivas não são realmente muito boas, pois a felicidade jamais se alcança. Está sempre aldilá del mare, em tudo aquilo que não temos, não possuímos, não vivenciamos. É sempre o "como seria bom se...", e assim seguem os [des]encontros das relações humanas, até a última realização desejante: a morte, quando tudo é ausência. Se só desejamos o que não temos, não temos o que desejamos e estaremos sempre "em busca de", vazios, e nossa angústia na verdade não tem rosto - é o sentimento de falta que acompanha o existir.

Todavia, muito embora eu aprecie especialmente o pensamento de Schopenhauer, acho que ele carregou demais no peso de sua leitura. Será que somos tão infelizes assim? Se ele tivesse total razão (a não ser que eu tenha entendido mal o que ele diz), parece-me que seríamos mais infelizes do que talvez sejamos. Ocorre que não desejamos apenas o que nos falta, desejamos também o que temos. Ora, eu continuo desejando estudar Filosofia, e muito embora não sinta o tempo inteiro a alegria que senti ao ser aprovado no teste de seleção, e ainda que eventualmente possa sentir tédio em alguns momentos, o desejo se sustenta. Poderíamos dizer o mesmo a respeito de nossos romances, trabalhos e tantas outras coisas.

O tédio só vence se não aceitamos o entendimento de que não podemos ter tudo. É impossível se relacionar com todas as pessoas interessantes que existem no mundo e que poderiam ser, potencialmente, nossas namoradas. É impossível realizar todas as coisas que existem em nossa imaginação.

Tenho a impressão que muitas vezes as pessoas fazem uma pequena confusão entre "desejo", "esperança" e "vontade". O desejo está na esperança e na vontade, mas esperança e vontade não são a mesma coisa, muito embora no uso coloquial da língua portuguesa nós costumemos estabelecer esquisitas relações de sinonímia entre uma coisa e outra, indevidamente. O desejo do "espero que" não é o mesmo desejo do "tenho vontade de/que". A esperança se refere ao que não depende de nós, é mera expectativa impotente, depende do acaso. A vontade, ao contrário, é um desejo que depende de nós. Vale aqui lembrar o que diz Sêneca a Lucílio, em seu "Cartas a Lucílio" (o primeiro livro de autoajuda - de bom nível - do Ocidente): "desaprenda a esperar e eu o ensinarei a querer".

Não é de se espantar que Spinoza não via a esperança como virtude. Chamava-a de "impotência da alma", e a via como irmã siamesa do medo (afinal, só há esperança quando há, igualmente, receio de sua não-realização, ou da realização de seu exato contrário). Os estóicos, por sua vez, viam a esperança como um pathos.

O homem sábio, por sua vez, só deseja o que depende dele e de seus atos volitivos. É muito frustrante "esperar" por justiça, paz, igualdade, "esperar" pela melhoria do mundo. Cômodo e desapontador.

Dito isso, se há diferença entre o desejo na esperança e na vontade, que diferença poderia haver entre "paixão" e "amor"? Poderíamos arriscar dizer que a paixão se refere ao irreal: ao que não temos, ou que acabamos de conseguir, mas ainda não conhecemos muito bem. A paixão é sempre por causa de.

O amor, por sua vez, refere-se ao real. É o que se revela com o tempo, e é sempre apesar de. Nos apaixonamos por causa da beleza, da inteligência, do carisma do outro, mas se amamos é apesar de seus eventuais defeitos e facetas desagradáveis. Amar não é esperar, não é "esperança". Amar é des-espero, no sentido do que não se espera, mas efetivamente é.

É possível desejar o que se tem? Parece-me que sim, é perfeitamente possível. Pode ser difícil, na atual conjuntura das coisas, em que somos instados continuamente a trocar objetos funcionais por outros apenas pelo sabor da novidade. E se fazemos isso com celulares e roupas, o que se dirá de nossas relações humanas? O pensamento de que "a grama do vizinho é mais verde" parece a porta certa da infelicidade. Não se trata de contentar-se com pouco, ou não querer lutar pelo melhor, mas de entender que não se pode ter tudo. E muito menos pautar a felicidade na esperança, que, conforme denuncia Spinoza em sua Ética, é uma impotência.

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Aparte digressivo: deu-me vontade de recomendar Doris Lessing, que merecidamente ganhou o Nobel de Literatura no ano de 2007. Lessing é uma escritora versátil que, num dado momento de sua carreira, criou excelente ficção científica. Um de seus livros, chamado "Os Casamentos entre as Zonas 3, 4 e 5", fala de um intercâmbio entre pessoas de mundos diferentes. O que chama a atenção neste livro é que a diferença fundamental entre um planeta mais evoluído e outro menos evoluído não é a tecnologia. São as relações humanas. No mais evoluído dos planetas, o amor não é uma propriedade privada. Não há sentimento de posse, ciúmes, nada parecido, até porque nenhum de seus habitantes sente "esperança" - o que não significa que o planeta seja promíscuo! Há apenas um intenso "agora", de encontros absolutamente transparentes, sem recalques. O planeta de Lessing é a utopia de Reich! Se ficaram curiosos sobre, eis o livro:
http://www.cienciamao.usp.br/tudo/exibir.php?midia=fic&cod=_oscasamentosentreaszonas34e5
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IMPORTANTE: não esqueçam de ver os avisos do professor Renato sobre nossos trabalhos de conclusão de curso, nos posts anteriores a este!

Aula de 16 de setembro: Distopia marxista

Provavelmente os livros mais interessantes são os de marxistas decepcionados com o comunismo. Sugiro (nem sempre os títulos se mantêm):
- Victor Serge, Memórias de um revolucionário
- Alfred Rosmer, Moscou sob Lênin
- A. Koestler, O Zero e o Infinito (ou Darkness at Noon), bem como o Yogi e o Comissário
- K. S. Karol, sobre Fidel Castro
- René Dumont, Cuba é socialista?
- Tschihart, Deuxième retour de Chine
- os livros dos irmãos Medvedev (Roy e Zhores - ou Jaurès, depende da grafia) sobre os governantes soviéticos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Trabalho de aproveitamento

Para conclusão de curso, cada aluno redigirá um trabalho a ser entregue, por email, até 1º de dezembro, com o limite máximo de 20 mil caracteres com espaço. O trabalho deve usar o Word e evitar macros.

Previamente, contudo, cada aluno deve propor, por email, o tema de seu trabalho. A proposta não deve ter mais de 3 mil caracteres com espaço e deve ter relação com a temática da disciplina.

O email a ser utilizado deverá ser utopiaerealismo@gmail.com. Toda correspondência sobre a disciplina deve ser enviada para ele, que será desativado em janeiro de 2011.

Importante atentar para os seguintes pontos, necessários para que o uso do email seja viável:

1. É responsabilidade do aluno acessar o e-mail que usou para enviar o trabalho, caso o professor tenha alguma dúvida a lhe colocar.

2. A proposta de trabalho (até 28 de setembro) e o trabalho final (até 1º de dezembro) devem ser enviados em arquivo Word, sem macros, anexo ao email.

3. O título do arquivo deve ser o nome completo do aluno.

4. No item “assunto” do e-mail, deve constar também o nome do aluno.

sábado, 4 de setembro de 2010

Rousseau, vegetarianismo e a ética da compaixão

Em nosso encontro sobre Jean-Jacques Rousseau, num dado momento levantei o fato do suposto vegetarianismo deste pensador. Achei pertinente escrever algo sobre isso, com a finalidade de apontar para um dos pontos menos explorados na obra de Rousseau que, creio, é fundamental para o entendimento do espírito deste filósofo. Conforme bem salientou o professor Renato, Jean-Jacques Rousseau pode até ser contraditório em diversos pontos de sua obra, mas há nele uma unidade de princípios e - se muito não me engano - a compaixão é a "liga" que cola sua obra.

Em verdade, eu desconhecia o fato de Rousseau ser vegetariano, até me deparar com uma frase que constava na assinatura eletrônica de uma amiga médica que não ingere animais, Angela Mazzucco. A frase, supostamente atribuída a Rousseau, diz o seguinte:

Os animais que você come não são aqueles que devoram outros, você não come as bestas carnívoras, você as toma como padrão. Você só sente fome pelas criaturas doces e gentis que não ferem ninguém, que o seguem, o servem, e que são devoradas por você como recompensa pelos seus serviços.

Muito embora não tenha encontrado a fonte desta frase (repetida à exaustão em diversos sites pró-vegetarianismo), ela me parece real. Minha prudência tem razões de ser: qualquer estudante acadêmico já se deparou com frases supostamente atribuídas a autores diversos que, no final das contas, jamais foram escritas ou ditas por aquele autor. Fernando Veríssimo que o diga!

Mas é em sua obra "Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens" que podemos ver a contestação de Rousseau aos hábitos carnívoros do homem, hábitos estes que são apontados pelo filósofo como incondizentes com sua natureza. Tal observação se encontra na nota H do livro, onde ele afirma:

(...) A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o colocar entre as espécies frugívoras.

Rousseau de fato defende o vegetarianismo, a partir do argumento de que nossos dentes e intestinos são mais assemelhados aos animais vegetarianos do que aos animais carnívoros. Em diversos momentos, ele aponta para o suposto fato de que a estrutura física do homem selvagem é melhor constituída do que a do civilizado europeu. Entretanto, vale dizer, mesmo as tribos ditas "selvagens" (dos africanos, por exemplo) não constituem um perfeito exemplo do que Rousseau quer dizer quando se refere ao BOM SELVAGEM. Mesmo os africanos já teriam se afastado do estado de natureza, que seria essencialmente bom. Ou seja: o "bom selvagem" rousseano é mais uma hipótese, ou lembrança mítica, do que um fato constatado em qualquer civilização ou época do planeta Terra, conforme lembra Freud a Einstein em sua famosa carta "a paz é possível?

A título de curiosidade, o melhor exemplo de "bom selvagem" que já encontrei pode ser visto no clássico "2001, uma Odisséia no espaço", de Kubrick. Ora, logo no princípio do filme é evidente que o ser humano vivia num estado da mais absoluta paz e harmonia com a natureza, e algo muda a partir do momento em que o primeiro primata assassina um animal e dele se nutre. A partir daí, surge o desejo de poder, o desejo de comandar, de liderar e de intimidar os mais fracos.

Todavia, ao que tudo indica (a partir de diversos estudos biográficos), e para desapontamento dos vegetarianos, Rousseau não era vegetariano, ou ao menos não um vegetariano tão firme quanto gostaria de ser. Ele apenas sugeria o vegetarianismo como um estilo alimentar superior, mas que ele mesmo não seguia fielmente. Isso me parece menos uma incoerência de Rousseau, e mais a dificuldade de acesso a uma alimentação plenamente vegetariana. Se mesmo hoje em dia um vegetariano precisa se desdobrar para comer, muitas vezes enfrentando problemas sociais, não conseguindo participar de jantares e almoços quando convidado, o que se dirá dos problemas que um adepto deste estilo alimentar encontraria na época de Rousseau...

Muito embora Rousseau de fato não pregue o retorno ao estado de natureza, tal qual Milton que, em "Paraíso Perdido", diz que "a inocência perdida não pode ser recuperada", o filósofo afirma que o cultivo de hábitos alimentares vegetarianos possibilitaria maior proximidade com o estado de natureza. Ou seja: se não é possível retornar completamente ao estado natural, ao menos podemos estar mais próximos.

Obviamente, estas teses de Rousseau são contestáveis. Na prática, o ser humano é melhor classificado como onívoro. Ademais, o próprio Rousseau toma como exemplo de "vigor físico" os selvagens caçadores. De todo modo, a proposta vegetariana (ainda que não praticada em 100% do tempo pelo filósofo) é coerente com a insistência de Rousseau em torno do tema da compaixão. A compaixão não seria apenas entre os homens, mas seria uma responsabilidade ética do homem para com todos os seres vivos. Contemporaneamente, o tema do vegetarianismo ganhou força em alguns meios filosóficos que, com argumentos sólidos e persuasivos, questionam com que direito tomamos os animais para nosso deleite. Que se destaque o fato de que Rousseau não diz que não somos capazes de digerir carne, o que seria absurdo, posto que somos. Ao que parece, ele salienta que a alimentação carnívora induz em nosso espírito características afastadas do estado de natureza, ou seja, trata-se de uma alimentação corruptiva. Não seria, portanto, um simples problema orgânico, mas a falta de compaixão implicada em se alimentar de um animal afastaria mais e mais o homem da natureza. A alimentação carnívora desencaderia problemas espirituais, problemas relativos à inclinação do temperamento.

Rousseau, diga-se de passagem, não é o único filósofo a sugerir o vegetarianismo como uma conduta alimentar mais adequada. Pitágoras, segundo historiadores, falava da importância de uma dieta lacto-vegetariana. Também o estóico Sêneca é descrito como vegetariano (o que, aliás, é bem coerente com o estoicismo, que rejeita tão fortemente todos os luxos e excessos).

Michel Onfray levanta questionamentos perspicazes contra tais idéias de Rousseau. Segundo ele, Rousseau cometeu o erro de querer converter uma regra particular numa regra geral. Se ele, Rousseau, tinha estômago fraco e era por demais sensível para comer carne (o termo usado por Onfray é "terno estômago de ganso com cólicas"), este seria um problema dele, e não da humanidade. O vegetarianismo seria mais adequado para alguns seres humanos, mas não para todos. E, além disso, uma pessoa não é "eticamente superior" por não ingerir animais mortos e nem sofre melhoria de temperamento por isso, muito embora - ainda segundo Onfray - muitos vegetarianos gostem de pensar isso de si mesmos, o que termina incorrendo em petulância e vaidade, além de amnésia ou ignorância de fatos históricos: Adolf Hitler era vegetariano, mas isso não serviu para que ele se aproximasse mais da suposta bondade essencial do ser humano. E apesar de citar Hitler neste parágrafo poder parecer uma clássica manifestação da "lei de Godwin"², me parece pertinente para ilustrar a arrogância que muitas vezes se subentende a partir do discurso de alguns vegetarianos que vêem a si mesmos como eticamente melhores do que o resto da humanidade onívora. Ainda que eu em particular concorde com os princípios éticos que norteiam o vegetarianismo, minha concordância não me faz ignorar aquilo que o próprio Rousseau tanto criticava: a vaidade. Vaidade inescapável mesmo para quem come apenas vegetais.

Ainda sobre este tema, não há como não lembrar da carta de Nietzsche a Gersdorff “A regra que a experiência fornece nesse ramo é a seguinte: os temperamentos intelectualmente produtivos e animados necessitam de carne. Qualquer outro regime só pode convir a camponeses e padeiros, que são apenas máquinas de digerir”. Bem, Nietzsche é Nietzsche, e mesmo quando é violento, é divertido. Mas a essência da crítica de Onfray encontra eco em Nietzsche: por ter problemas particulares com a ingestão de carne, o vegetariano realiza uma interpretação moral geral de um fato biológico particular, convertendo sua própria singularidade em regra para contato com a "verdadeira essência" (e, sobre essências verdadeiras, Nietzsche geralmente lança mil pedradas).

De todo modo, o que chama a atenção é o fato de que, sim, a questão da alimentação vegetariana fazia parte da ética rousseana, ainda que ele mesmo não seguisse o tempo inteiro - aparentemente por dificuldades práticas da época - este estilo alimentar. Concordemos com isso ou não, sigamos este exemplo ou não, o vegetarianismo é coerente com a única coisa que, segundo Rousseau, poderia nos melhorar: a prática da compaixão.

¹ Sobre a carta de Freud a Einstein em torno do tema "a paz é possível?", muito adequada ao tema do nosso curso, pensei em postá-la, mas acho melhor aguardarmos o nosso encontro em que o professor Renato exporá as idéias de Freud.

² A "Lei de Godwin", melhor conhecida como a "regra das analogias nazistas de Godwin", nasce de uma afirmação feita nos anos 90 por um advogado norte-americano, Mike Godwin, que diz:
"À medida que uma discussão na Usenet cresce, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Hitler ou nazistas aproxima-se de 1 (100%).