quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Considerações sobre as duas instâncias do desejo

Alexey, gostaria de dividir algumas reflexões sobre seu ótimo texto.

Não sei se concordo com sua distinção entre desejo e vontade. Preciso pensar (e ler) mais sobre isso, mas me parece que há tantas coisas envolvidas no “desejo” ou na “vontade” que, tendo a concordar com Nietzsche: seria somente uma questão de linguagem tratar esses conceitos como algo único. Nesse sentido, para poder falar sobre as coisas, seria lícito recorrer à categoria de unidade, desde que se admita que aquilo de que estamos tratando somente como palavra constitui uma unidade (Para além de bem e mal, “Dos preconceitos dos Filósofos”, § 19). Ainda que para poder discorrer sobre algo, num certo sentido, nos vejamos forçados a unificar pluralidades sob um conceito, há que se reconhecer que se trata de uma limitação inerente à linguagem. Diversamente disso, a tentativa de aplicar este diagnosticado fenômeno lingüístico às próprias coisas ocasionaria “conclusões” equivocadas, preconceituosas (nas palavras de Nietzsche). Desta situação, nem mesmo a ciência estaria a salvo, posto que também dependa da linguagem para se expressar: “toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem(Para a genealogia da Moral, Primeira dissertação, § 13).

Há tantas coisas diferentes, pulsões diferentes, contraditórias até, naquilo que dizemos que é nosso desejo ou nossa vontade, que é impossível analisar como uma única pulsão, um único sentimento: o “desejo”, a “vontade”. Mesmo Nietzsche, quando lança mão destas palavras, sempre coloca um complemento: vontade de potência, vontade de verdade, vontade de sistema. O desejo é múltiplo.

Quando você diz que continua desejando estudar filosofia (desejo constante) e que o desejo satisfeito por um objeto provoca tédio (desejo que se extingue), estaríamos tratando de duas situações bastante diferentes. Talvez, você não conseguisse desejar constantemente estudar um único texto filosófico por toda vida. Nesse caso, a “chama” do desejo se apagaria.

Ao tratar da linguagem e das coisas operaríamos em níveis diferentes. A análise de Schopenhauer (cuja filosofia, confesso, conheço pouquíssimo) consideraria a palavra “vontade” como algo único, como um ímpeto humano, justamente por ignorar toda pluralidade - sentir, pensar, afetos (Para além de bem e mal, “Dos preconceitos dos filósofos”, § 19) - envolvida no que chama de “vontade”. Esse “querer” seria algo que, apenas como palavra, constituiria uma unidade. Essa espécie de “salto ilícito” de um nível para outro, a saber, do nível da linguagem para o nível da existência, permitiria aos filósofos falar da vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo. A Gloria costumava fazer uma analogia divertida: vontade seria como um bolo, composta de vários ingredientes...

Talvez, ainda por conta destes “saltos ilícitos” entre linguagem e “realidade”, tenderíamos a observar e analisar o “mundo” isolando fatos como “entidades independentes”. Porém, o agir humano seria diferente disso: não se trata de uma seqüência de fatos com intervalos vazios que separam um fato de outro, mas de um fluxo constante, emaranhado. Por exemplo, a liberdade da vontade não passaria de uma crença (legitimada e cristalizada pela linguagem), pois “pressupõe que cada ação singular é isolada e indivisível” (O andarilho e sua sombra, § 11).

De modo algum afirmo que tais problemáticas invalidem quaisquer análises. Contudo, creio ser pertinente considerá-las quando se reflete sobre o desejo, a vontade.

Posso ter entendido mal (Sorry! Se este for o caso), mas, em algum momento, sua análise soou como algo “linear” (e fundamentalmente racional?): desejo – consigo – passo para o próximo desejo; desejo – consigo – passo para o próximo desejo etc. Nesse sentido, sua pergunta “Qual o sentido em viver se todos os desejos estão realizados?” resumiria o sentido da vida ao saciar aquilo que desejamos (racionalmente?) e penso que esta seja uma visão reducionista de qual seja o sentido (se existe, seria um ou muitos?) da vida. Há tantas outras coisas que poderiam dar sentido ao viver. E aquilo que o desejar não dá conta de explicar? E aquilo que não desejamos, acontece e transforma a vida? Estaria mais para se tornar o que se é sem ter desejado, sem seguir uma meta desejada, sem ter querido, pressentido...

Outro problema dessa linearidade seria ignorar os graus, as nuances. Ainda que concordássemos que a vida se resume em desejar e estar satisfeito, dizer que "a vida oscila então como um pêndulo, da esquerda para a direita, do sofrimento para o tédio" é operar exclusivamente com dicotomias absolutas. Muitas vezes, estaríamos em algum grau intermediário entre estes dois estados: nem 100% sofrendo por um desejo insatisfeito, nem 100% entediados por aquilo que conseguimos, mas o pêndulo só pára nos dois extremos. E o percurso do pêndulo? E as gradações entre os estados?

Finalmente, a esperança. ἐλπίς/elpís [ou ελπίδα. De ελπω, elpo, que é uma palavra primária (antecipar, geralmente com prazer); expectativa (abstrata ou concretamente) ou confiança: – fé, esperança] é um dos males da caixa de Pandora. Das diversas interpretações acerca da consideração grega de esperança como mal, uma das que mais me agrada afirma, grosso modo, que por conta desta antecipação implicada na esperança, os homens estariam sujeitos ao medo irracional. Assim, embora padeçam em virtude dos males que escaparam da caixa, foram poupados do pior: a expectativa antecipada destes mesmos males. Mas deixando de lado juízos de valor gregos acerca da esperança e voltando ao seu texto, tenho a sensação de que esperança talvez indique justamente o contrário do que se supõe do desejo. Ao passo que desejar, ter vontade parece exortar à ação, ao movimento no sentido de buscar satisfação, a paralisação da ação parece inerente à esperança. Tenho esperança, tenho expectativa, confiança em algum acontecimento, então, aguardo, paro... esperançosamente, espero.

Um abraço

Ana

4 comentários:

  1. Oi Ana! Sou eu, Alexey, estou escrevendo de outro blog, de outro PC e esqueci a senha do blogspot :))

    Que bom que você escreveu, e acho que ficou melhor assim mesmo, como um novo post, até porque seu texto traz tantas questões novas e instigantes que talvez ficasse perdido se aparecesse apenas como um comentário do post anterior. Ademais, ao que me parece a nossa participação no blog faz parte de nossa avaliação na disciplina, e eu já estava ficando um pouco angustiado por estar sendo o único a escrever nos últimos tempos. Tomara que nossos colegas também criem posts!

    Você trouxe diversos pontos que me parecem significativos, e creio que será possível aprofundá-los devidamente na aula que o professor Renato dará sobre Nietzsche. As coisas que você trouxe não me são estranhas, até porque também tive o prazer de ser aluno da Glória, e entendo a perspectiva daquele que se dizia dinamite, e não homem. O lance é que, como ainda não chegamos em Nietzsche em nossas aulas, eu quis me ater às perspectivas de Reich, trazendo algumas coisas do Spinoza e do Schopenhauer que me soaram semelhantes. Passou-me pela cabeça as idéias de Nietzsche, mas achei que estaria me adiantando ao citá-lo.

    Mesmo achando que os pontos que você trouxe caibam melhor para quando discutirmos Nietzsche, não vejo por que não tocar em alguns pontos agora. Primeiro, sobre a distinção, ela não é entre "desejo" e "vontade", e sim entre o desejo que há na vontade e o desejo que há na esperança. Ambos, vontade e esperança, possuem o elemento do desejo. Na verdade, nada poderia existir sem a condição desejante. Mas há diferença substancial entre o desejo da vontade [meu agir, ainda que eu tenha uma série de motivações inconscientes e apenas a ilusão de absoluto livre-arbítrio, como diria Freud ao declarar que não sou senhor de minha própria casa] e o desejo da esperança, já que esta última se configura como um desejo em torno daquilo que não depende de nós. Como você bem lembrou, e creio que isso foi passado pela Glória na aula sobre os estoicos, a esperança é "o último mal que sai da caixa de Pandora". Neste sentido, Spinoza parece concordar com os estoicos ao dizer que ESPERANÇA não é uma boa coisa, e sim uma impotência da alma. Me parece que o desejo está na esperança, sim. Mas é um desejo impotente. O desejo enquanto vontade é uma outra coisa. Por isso, são "desejares" diferentes: o da esperança é um "desejo QUE", antevendo uma possível ocorrência. O da vontade é um "desejo+verbo", um desejo-fazer, desejo-amar, desejo-caminhar, desejo-estudar. Nós usamos o mesmo verbo, que significam coisas distintas. Vou dar um exemplo bem banal pra salientar a diferença, conforme a vejo:

    ResponderExcluir
  2. O pai de uma amiga teve um sério problema de saúde, recentemente. Qualquer pessoa minimamente sensível lhe dirá "desejo QUE seu pai melhore". Mas este desejo, por si, não faz seu pai melhorar, nem piorar. É expresso na qualidade de gentileza, até porque é uma situação de absoluta impotência para os desejantes. O que podem eles fazer a respeito do problema de saúde do pai da minha amiga? Nada. Mas é possível o desejo-ajudar [para quem pode fazer algo de prático em prol do caso, como o médico, ou um amigo que se disponha a auxiliar], o desejo-melhorar [no sentido de um esforço do próprio paciente, se isso for possível]. O "que" do "desejo que" por si já anula minha potência de alma e me põe à mercê das ocorrências. Não que o desejo-agir não me coloque à mercê do "dar certo" ou "não dar certo". Eu posso desejar-agir e falhar por "n" circunstâncias. Mas são "desejares" que me parecem sutilmente distintos, pois um se limita completamente à esfera da intencionalidade, enquanto o outro age-no-mundo. É claro, aqui algo não me escapa: mesmo o desejo-agir guarda consigo uma esperança, afinal ninguém em sã consciência age sem expectativa alguma. Não escapamos da expectativa. Se eu desejo-estudar, é porque de alguma forma creio que serei bem sucedido em minha empreitada. Se desejo-amar, é porque imagino que serei correspondido. Não escapamos da esperança. Neste sentido, de fato seria muito estreito dizer que existem "dois desejares" e pronto. Além disso, eu acho que você tem razão ao criticar a questão da suposta liberdade da vontade. Isso, aliás, é bem freudiano: não podemos ser livres, não somos senhores de nossa própria casa. Se "eu" decido estudar Filosofia, como posso dizer que o encaminhar deste desejo se deve unicamente a "mim"? Que tantas outras coisas ignoro, que corroboraram para que eu efetivasse este desejo-estudar?

    Também acho que é linear demais considerar que a vida oscila entre o tédio e o sofrimento. Isso é do Schopenhauer, e me parece muito triste, além de irreal. Talvez ele estivesse especialmente deprimido quando o disse. Não concordo que a vida oscile entre tédio e sofrimento. Existem matizes, como você bem disse, e a vida se dá nestes subtons e cores mescladas.

    ResponderExcluir
  3. Quanto ao desejo, um amigo psicanalista, Walter Doege, trouxe alguns pontos interessantes, que tomo a liberdade de reproduzir aqui, tal qual me foi transmitido por e-mail, até porque ele traz Nietzsche. Diz ele:

    "lembro que psicanaliticamente o desejo deseja apenas desejar...o desejo - e não o sujeito desejante, sujeito cindido, dividido...pelo desejo - o desejo não tem objeto bem estabelecido que desejo não é vontade nem querer nem necessidade e tampouco paixão ou amor
    Freud considerava que a função terapêutica da jovem psicanálise é transformar a miséria neurótica em uma infelicidade cotidiana.
    Bem colocado que o Ocidente (latu sensu) assimila sem se apropropriar, sem elaborar... a atitude budista, por exemplo...mas como permanecer apenas na estaca do instante?... (talvez seja de Niestzche essa expressão)."

    Eu achei muito bem colocada a lembrança dele acerca do desejo, segundo a psicanálise. "O desejo deseja apenas desejar". Os eventuais objetos são apenas escusas, licenças. O desejo não pode ser morto, a não ser quando nós mesmos morremos. Há uma máxima, creio que japonesa, que diz "todo desejo é um desejo de morte". Tem muita coisa pra se pensar nesta frase...

    Note que a frase final do Walter sobre o objetivo da psicanálise é algo bem "Schopenhauer" de ser [e não é de se estranhar, considerando-se que este filósofo não era nada desconhecido a Freud]. Este é o ponto em que Reich parece discordar fortemente de Freud. Pelo que entendi, e talvez tenha compreendido errado, Reich via as coisas por um viés oposto. Ele acreditava que podíamos, sim, ser felizes. Criticava a "miséria sexual" da humanidade.

    Seria possível uma superação? O super-homem de Nietzsche é uma utopia? Porque se o super-homem for possível, se considerarmos o eterno retorno e nos regozijarmos diante desta perspectiva de nossas vidas se repetindo, então há felicidade possível. E a vida não seria o tédio-sofrimento de Schopenhauer...

    Enfim, apesar de eu estar escrevendo tudo isso sem - creio - a devida disciplina filosófica, acho que é pelo menos um começo para muitas coisas que poderemos discutir quando chegarmos ao nosso adorado filósofo-dinamite :)

    Abraços,
    Alexey.

    ResponderExcluir
  4. O desejo/vontade surgiu do instinto básico e fisiológico primário... evoluiu ao desejo de sabedoria para atingir a serenidade por não encontrar a tal explicação sobre o surgimento da vida, onde/porque ela termina e a imensidão do cosmos (orientais) e ao desejo fútil de sentir/querer prazer em tudo o que for possível atribuir felicidade efêmera de realizar um desejo/vontade e de concluir o maior número de etapas enquanto vivo: seja através do poder de compra, de se ter um filho, de amar, de trair, do poder (ocidental).
    Estaria eu em coerência, meu amigo Alexey?
    Abs.

    ResponderExcluir