RIBEIRO, Renato Janine. A utopia lírica de Chico Buarque de Hollanda. In: Heloisa Starling; Berenice Cavalcante; José Eisenberg. (Org.). Outras conversas sobre os jeitos da canção. 1 ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e Fundação Perseu Abramo, 2004, v. 1, p. 149-168.
A utopia lírica de Chico Buarque de Holanda
Renato Janine Ribeiro
Confesso que tive dificuldades em lidar com o corpus que nos foi submetido, um elenco de dezenove músicas da MPB. Por isso, procurei uma elaboração um pouco dissidente do tema, tomando um único autor – Chico Buarque de Holanda – e analisando um certo número de suas músicas. Fico satisfeito de ter tomado este caminho, porque sinto que os que me precederam nesta sessão examinaram muito bem o corpus inicial, e em especial a oposição utopia/distopia. Discutirei então o conceito de utopia, que nos vem de Thomas Morus, mas que em última análise pode remontar à República, de Platão, que é um dos autores que mais inspira Morus, ao escrever este, em 1515/1516, o livro que cunhou a palavra “utopia”. O corpus que utilizei é a seleção de músicas que está nos cinco CDs Chico Buarque - Cinqüenta Anos, de 1994, organizados por Tárik de Souza. Os discos são, cada um com quatorze músicas, “O amante”, “O político”, “O trovador”, “O malandro” e “O cronista”. São assim cinco personagens paradigmáticos que Chico assumiria, na condição de autor. Alguns até se podem sobrepor: há muito do amante que aparece também no trovador, há temas do político que comparecem no cronista. Além disso, utilizei um pouco a minha memória e ouvi outros discos: estas semanas escutei umas cem músicas dele, no carro. Como guio muito, morando bem longe do centro de São Paulo, devo ter ouvido umas quarenta horas de música. Penso que isso me autoriza a dizer algo minimamente representativo de um autor que compôs centenas de canções. Provavelmente não ouvi, estes dias, mais que um quarto ou quinto da obra de Chico, mas certamente quase tudo o que constitui um seu relativo cânone.
Comecemos pelo fato de estrear Chico Buarque em 1967, num Festival da Record, com extraordinário sucesso; melhor dizendo, o grande momento em que ele se torna conhecido e popular é com A Banda, música extremamente carregada de utopia, mais que isso, uma composição que constitui uma utopia – e uma utopia lírica. Mas utopia lírica é uma contradição. As utopias não são líricas; são épicas ou geométricas. Se tomarmos a distinção básica ou elementar entre a lírica, como o que intensifica a primeira pessoa, o gênero dramático, como lidando com a segunda pessoa, e o épico, com a terceira pessoa – digamos, essa distinção de manual de estudos literários – poderemos dizer que a utopia tem muito mais a ver com a terceira pessoa. Seu universo é o da gestação de um coletivo, mais que isso, de um coletivo que seja herói enquanto grupo, enquanto nação, talvez até mesmo enquanto classe – enfim, enquanto uma totalidade coesa e harmônica que pratique altos feitos, uma proeza, uma epopéia, uma trajetória.
Ou talvez – como este coletivo somos nós, como o apelo da utopia está em convidar-nos a fazer parte dessa irmandade, dessa comunhão – a utopia tenha a ver com a primeira pessoa, só que do plural. O sujeito utópico (ou épico) é o conjunto de todos nós, pelo menos de todos os puros, excluídos os que não merecem integrar esse coletivo.
Ou, indo mais longe: a primeira pessoa no plural, épica ou utópica que se mostre, é na verdade uma projeção da terceira pessoa na primeira, convertendo esta última em plural. O sujeito dito majestático (“nós”) é na verdade um “eu” que se tornou “eles”. E não só porque agregou inúmeros “eles”, mas antes de mais nada porque conseguiu uma objetividade, uma exterioridade a tudo o que é frágil, uma densidade ontológica que nada fazia prever e que nada, no tempo mesmo, justifica mais.
Ora, mas é justamente na fragilidade da primeira pessoa do singular que a lírica deita suas raízes. Voltemos a A Banda. É muito significativo que essa música dispute o primeiro lugar, no Festival de Música Popular Brasileira promovido pela TV Record, em 1966, com Disparada. Empataram, por sinal. O que temos aí é o confronto d’A Banda com uma música absolutamente épica. Disparada, talvez a melhor música de Geraldo Vandré, nos situa perante uma trajetória coletiva, nacional, mostrando a metamorfose de alguém que já matou muito animal, mas agora se recusa a isso, de alguém que renega um passado cruel e injusto e formula um projeto de justiça social para o país. Esse modelo não surgiu do nada: o filme Os fuzis, de Ruy Guerra, terminado logo antes do golpe de 1964, expressava coisa parecida – seu herói é um motorista de caminhão, desiludido das coisas, mas que no momento final abraça a causa do povo. Disparada é uma música muito forte, mas totalmente oposta a A Banda. Essa oposição não significa, porém, que Disparada tenha um projeto coletivo e A Banda, um individual. O interessante é que A Banda seja exatamente a descrição, ou a proposta, ou o sonho, de gente que se irmana, de uma sociedade que se converte em comunidade ao ser atravessada por um sentimento de amor. São dois projetos de comunidade, de sociedade injusta (no caso de Disparada) ou infeliz (no d’A Banda) tornada, respectivamente, justa ou feliz porque se converteu em comunidade. A diferença está no projeto, que num caso é o da justiça, no outro o da felicidade – e que, em função disso, o futuro se constitua, n’A Banda, pelo lirismo, e em Disparada pela epopéia.
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Ultimamente me tem interessado discutir o discurso político brasileiro. Parece-me que boa parte dele foi, ou ainda é, épico. Por exemplo, penso que podemos entender nossa primeira disputa eleitoral forte em trinta anos, a de 1989 pela presidência da República, como o confronto entre uma épica de direita e uma épica de esquerda. Venceu a de direita – e a direita, ao tornar-se épica, tende a uma certa leitura autoritária, talvez quase fascista. Quanto à esquerda, posso adiantar duas proposições. Primeira: ela, ao contrário da direita, não é necessariamente ditatorial por ser épica. Uma epopéia de esquerda pode ser democrática. E isso se deve à segunda proposição: a esquerda dificilmente deixa de ser épica. Ela manifesta uma forte tendência à epopéia. Isso, por sinal, responde por suas dificuldades estes anos, em que temos vivido um processo de crescente avanço do prosaico. Nossas instituições são cada vez mais prosaicas, nossa política marca o triunfo da prosa. Monsieur Jourdain venceu, ele que fazia prosa sem o saber.
Hoje, quando se fala em democracia, cada vez mais se pensa num regime no qual o respeito ao outro venha junto com a aceitação do mundo como ele é, com todas as suas injustiças e infelicidades – num mundo construído sobre um sacro temor da épica, a qual ficou associada aos totalitarismos do século XX. Assim, se na primeira eleição para presidente, em 1989, após quase quarenta anos de jejum eleitoral, prevaleceu a épica de direita, desde a segunda – em 1994 – temos tido vitórias federais da prosa. Parodiando Carlos Drummond, que falava em poeta federal, estadual e municipal, poderíamos dizer que temos hoje prosadores – ou prosaicos – federais, estaduais, municipais. Valeria, valerá a pena desenvolver essas questões; limito-me hoje a um ponto: é bem provável que o esgotamento da épica se deva a razões mais fortes e profundas do que a simples conjuntura dos anos 90. Uma razão quase evidente consiste em ter a épica servido para incontáveis repressões. A epopéia pode ter sido liberticida. Mas isso não implica que devamos aceitar o triunfo da prosa: haverá que pensar na lírica e no drama [1].
Esse mesmo avanço da prosa pode até explicar alguma coisa das últimas canções do corpus desta mesa, ou sejam, as canções do rock dos anos noventa, protestando contra a sociedade brasileira. Talvez o caráter tão prosaico que assumiu nossa sociedade repercuta em letras assim prosaicas, de escasso valor poético, muito mais de desabafo que de elaboração literária. O descontentamento, que elas expressam, com este mundo prosaico se manifesta em letras, igualmente, prosaicas. Elas ecoam a prosa, mas também se descontentam com este mundo sem sonho, sem fantasia, para o qual poderia valer como lema a frase de Guizot numa época equivalente. Por volta de 1840, na França, a oposição defendia o sufrágio universal; Guizot, então ministro, respondeu: “Enriqueçam-se”. Com isso, ele queria dizer que, em vez de ampliar o direito de voto de modo a nele incluir os que ganhavam pouco, seria melhor estes últimos trabalharem mais, aumentando seus rendimentos de modo a entrarem na faixa dos eleitores. Mas sua frase foi compreendida, talvez sem que fosse essa a sua vontade consciente, como significando que seu projeto político para a sociedade não ia além do enriquecimento das pessoas; é como se ele dissesse: esvazie-se o político, a casa comum de todos nós, e vá cada um cultivar seu jardim íntimo, ou melhor dizendo, privado, vá cada um investir em seu enriquecimento pessoal.
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Contra esse contexto, soa fascinante a utopia paradoxal, a utopia-oxímoro que é a de Chico Buarque, na qual o utópico – e sua reconstituição do social e do político – sempre se liga a uma intensificação do afeto, a uma espontaneidade, à malandragem.
Aliás, é curioso que a imagem de Chico não padeça do papel que ele dá à transgressão. Ele celebra-a sempre, embora em graus variados, mas que incluem o delito, a contravenção, até mesmo o crime – bem como o adultério e aquilo que em outros tempos se chamava “amor livre”. Contudo, embora sua transgressão chegue a incluir casos tipificados no Código Penal, o eixo dela está naquilo que enfrenta ou afronta a moral vigente, denunciada como hipócrita e geradora de infelicidade (ver, ou melhor, ouvir, em especial, Geni e o Zeppelin). E, desses dois aspectos que exibem os costumes dominantes, mentira e sofrimento, o que mais importa para ele é o segundo. Não se trata de denunciar a hipocrisia por ser hipocrisia, mas por engendrar a infelicidade.
A peça com a qual Chico Buarque ingressou no teatro, Roda Viva, de 1968, chocou; nela havia palavrões o tempo todo, trocadilhos como “não confunda a obra do mestre Picasso com a pica de aço do mestre da obra”, e os atores chegavam a lançar talhos de carne crua sobre a platéia – o que, por sinal, fazia o público refugiar-se longe das primeiras filas, receoso de receber o impacto do sangue ou alguma abordagem constrangedora e sexualizada dos atores e atrizes [2]. Enfim: é curioso que nada disso cole na imagem de Chico Buarque, que continuou em larga medida sendo a do bom moço. Se procurarmos um transgressor, espontaneamente talvez encontremos Caetano antes de Chico Buarque, ainda que este último confira, ao marginal, uma exemplaridade tão nítida. De todo modo, se Tárik de Souza tem razão em dedicar ao malandro um disco em sua antologia, é porque percebe que a transgressão constitui uma das figuras básicas de sua obra.
Eu acrescentaria: a transgressão é justamente o que formula a utopia de Chico Buarque. No seu pensamento, a ordenação justa e boa do mundo, que é a idéia de utopia, passa por aí. Eis o paradoxo, o conflito, a contradição: a idéia de utopia é sempre uma idéia de ordem, de organização. Mas, em Chico Buarque, a instauração da justiça e da vida boa exige intensificar a transgressão. Aliás, a própria justiça, como já insinuei, só faz sentido se tiver como base a felicidade, e essa inclui sexo e transgressão. A boa lei só existirá se for baseada na quebra da lei. Ou, se quiserem, a boa lei social só poderá ser fundada na quebra da lei moral, sexual.
E isso não passa simplesmente pelo advento de uma nova lei, e melhor. Na parceria de Chico Buarque com Milton Nascimento, na música Cio da terra, a lavoura é pensada a partir da sexualidade: trabalhar, lavrar a terra, fecundá-la, amá-la. Isso vale também para o trabalho em geral – que, ao longo dos últimos quatro séculos, constituiu o paradigma da moralização, opondo-se aos prazeres, ao gasto, ao desfrute, ao gozo. Este papel moralizador, negativo [3], do trabalho é-lhe conferido, por exemplo, quando na acumulação capitalista se premia a poupança e se tributa o consumo; quando a propaganda vitoriana incentiva à austeridade e censura o desperdício, o qual fica associado a um prazer sem regras; ou quando o pensamento socialista, sob este aspecto tão parecido com o capitalismo moralizante, valoriza o trabalho como produtor por excelência de riquezas, como portador de uma moralidade e de um conhecimento do mundo ímpares.
Tomemos então, Valsinha: uma noite um casal começa a dançar e contagia toda a cidade. Este ato reencena A Banda: a infelicidade ambiente é alterada por um ato súbito, inesperado, do qual não vemos a causa [4]. O marido, sempre tão seco, chega uma noite em casa, transbordando de amor. De um amor doce, delicado, tanto que sua realização não passa por uma orgia, mas por uma valsa infinita, que impressiona a cidade. N’A Banda, via-se o mesmo fenômeno, só que do lado do público. As duas músicas são complementares, portanto. Valsinha encena a ruptura da ordem infeliz enfocando os que a rompem, embora sem dizer por quê. A Banda mostra o advento breve da felicidade pelos seus efeitos na sociedade. De todo modo, embora a felicidade seja curta, o espaço de alguns minutos n’A Banda, provavelmente de uma noite em Valsinha, e – não sabendo nós por que ou como adveio esse instante rápido – fique assim para a utopia um sabor efêmero e frágil, as histórias são exemplares: um outro mundo é possível, pelo afeto.
O malandro e o amante montam os modelos para se pensar o social e a política. Ouçamos o verso “hoje o samba saiu procurando você” em Quem te viu, quem te vê, ou, recorrendo a outra música também dos inícios de Chico – Olê Olá –, escutemos este “samba tão imenso que eu às vezes penso que o próprio tempo vai parar pra ouvir”. Tudo isso aponta um elemento utópico que se vislumbra, capaz de modificar o mundo por completo, na direção de algo muito melhor. Em várias canções se explicita a ligação do samba com essa idéia de transformação social. O samba, ou o amor, ou o Eros, é o ponto que pode efetuar essa grande transformação social. É o ponto nodal desta mudança, constituindo então um significante e um significado extremamente potentes, que a um tempo são a festa, o impacto que ela exerce no plano pessoal, e o seu alcance político, uma sociedade justa e alegre.
Mais que isso, o samba aparece geralmente como objeto do desejo, mas pelo menos num caso – o do verso já citado de Quem te viu – ele se torna explicitamente sujeito do desejo. Essa passagem é reveladora. Desejamos o samba, isto é, o prazer, a sociedade comunitarizada num coletivo sem desigualdade – mas, no fundo, desejar o samba é aceitar que ele mesmo tome conta de nós. No fundo, a questão é deixar que esse desejo assuma as rédeas de nosso destino. É por isso que, de objeto, o desejo torna-se sujeito. Há problema quando saímos dele. A renegada de Quem te viu hoje “vai de galeria”, enquanto os outros sambam na pista. Bata palmas “com vontade”, faça de conta “que é turista”: ela converteu em espetáculo, com a divisão italiana entre palco e platéia, o que antes era uma festa de todos, um congraçamento. Ela descarnavalizou o mundo.
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A alegria é a prova dos nove, dizia, no Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade. Não sei se é correto falar, nas composições de Chico Buarque, em alegria. A palavra que ele usa mais é felicidade. Só que essa, em contraste com a tradição moralizante da filosofia, consiste numa intensificação dos prazeres, ou do prazer. É uma felicidade alegre, o que curiosamente não é tão comum na tradição do pensamento.
Embora a filosofia fale muito em felicidade, costuma-se opô-la ao prazer. Entre muitos outros autores, posso citar Rousseau, no quinto passeio dos Devaneios do caminhante solitário:
Notei, nas vicissitudes de uma longa vida, que as épocas dos mais doces gozos e dos prazeres mais vivos não são, porém, as que mais me atrai recordar e as que mais me comovem. Esses curtos momentos de delírio e de paixão, por vivos que possam ser, não passam porém, por sua própria vivacidade, de pontos bem esparsos na linha da vida. São raros demais, e demasiado rápidos, para constituírem um estado, e a felicidade [bonheur] por que meu coração anseia não se compõe – em absoluto – de instantes fugidios: é um estado simples e permanente, que em si mesmo nada tem de vivo; sua duração, contudo, aumenta o seu encanto, a ponto de nele se encontrar, finalmente, a suprema beatitude [félicité: bem-aventurança] [5].
Esse trecho, que tem como chave central a oposição entre vivacidade (ou vida?) e felicidade, melhor dizendo, beatitude, bem-aventurança, total felicidade (note-se que vif ou vivacité aparecem três vezes, e sempre perto de um porém), claramente desdenha o prazer [6]. Isso porque, com seus picos e vales, o prazer não constitui um estado permanente. Contra a exaltação, Rousseau louva o equilíbrio. A mesma questão, aliás, se encontra discutida numa passagem da Utopia de Morus, quando o narrador expõe as diferentes opiniões que há, na ilha de Utopia, sobre a felicidade. É curioso, aliás, que seja esta a única diferença que se aceita entre os utopianos – que em todo o restante são extremamente iguais uns aos outros. Suas roupas, costumes, religião, tudo os iguala. Só a opinião sobre a felicidade fica em aberto. Pois a discussão sobre a felicidade basicamente divide, ainda que não muito, os que a consideram uma espécie de grau zero de desconforto, de exclusão dos excessos, e portanto um estado simples e permanente, no qual o prazer é entendido como ausência de desprazeres – e os que por ela entendem um nível positivo de prazer(es), numa escala mais alta do gradiente, mas que obviamente inclui o risco de que a vida, uma vez condimentada, venha a se tornar fator de infelicidade. Assepsia ou pimenta, eis a questão. Morus não recusa, rara posição na filosofia, que a felicidade possa estar no tempero, na intensidade, e sabemos que ele e sua família nutriam simpatia teórica e prática pelos epicuristas; mas ele constitui quase que uma exceção num debate mais que milenar.
A felicidade de que fala Chico Buarque o que é? Um estado simples e permanente, estável pois à custa de apenas zerar os males – ou uma euforia, com os riscos portanto da posterior ressaca, da queda no real, do vale que se suceda aos picos? Há elementos apontando quer uma, quer outra direção. Está claro que ele a deseja como uma permanência. E constituí-la não exige muito: os sons de uma bandinha do interior, o ânimo de um homem que um dia rompe a rotina. Mas também ele a quer como uma “enorme euforia”, como se ouve em Apesar de você. Em suma, é uma felicidade diferente da moralização cristã ou filosófica, que em seus traços essenciais eu rapidamente expus acima, a qual terminava sendo uma celebração da castidade e da contenção, em detrimento dos prazeres. É uma felicidade com sabor – “com açúcar e com afeto”, poderíamos dizer.
Isso também permite notar um descompasso do compositor com o que eu chamaria a “política dos cientistas políticos”. De alguns anos para cá presenciamos, na política concebida pelos cientistas políticos, um tema essencial, central: a redução do caráter antagônico dos conflitos. Os conflitos são, assim, administrados, mediante a alternância entre os partidos ou as posições. Esta é, em suma, a política da democracia possível. Mas é também uma política de alcance reduzido, e que não passa pela felicidade – melhor dizendo: que dificilmente concebe que possa haver caráter político na felicidade. Cientistas políticos dizem com freqüência que a política pode resolver só problemas políticos, mas não pessoais. Renunciou-se à idéia de que a mudança política mexa na vida pessoal. Ora, é exatamente contra isso que a obra de Chico se constrói. Se não puder acontecer esta mudança – esta utopia – a política deixa, para ele, de ter sentido.
Em suma, a felicidade funciona, para Chico Buarque, como um significante-ímã, ou um ímã semântico [7]. Há alguns significantes ímãs na sua obra de Chico, ligados entre si: euforia, amor, Eros. Esses significantes têm a potencialidade de transformar o social, como se fossem um fulcro que muda tudo – como se a partir daí se pudesse fazer o que em outros tempos se chamaria uma revolução. Aliás, não lembro ter visto, ou ouvido, na obra de Chico Buarque esse termo, revolução; mas a sua promessa – numa chave que não é mais partidária nem talvez política no sentido convencional – nela cintila, reverbera intensamente.
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No Brasil, a canção de protesto foi marcada pelo duplo sentido, certamente devido à ditadura e à censura. Ouvíamos músicas que tratavam de um assunto manifesto, e as decifrávamos pelo sentido subjacente, latente: verdadeiro. Um jogo assim se estabelecia entre a aparência e a substância, entre o superficial e a profundidade, entre o fait divers e a política. Em Chico Buarque, porém, as coisas se dão de outro modo. É certo que o duplo sentido aparece com muita freqüência, e é igualmente certo que nosso compositor foi tão visado pela censura que resolveu criar um personagem-autor, Julinho da Adelaide, com o propósito de que algumas de suas músicas, pelo menos, fossem permitidas.
Mas sua originalidade maior está ligada ao fato de que o duplo sentido não é, para Chico Buarque, nem apenas nem mesmo essencialmente um modo de burlar a censura. Muitas de suas músicas tratam do amor e também da política, ficando às vezes difícil distinguir o que é uma, o que é outra. O mais certo não é, então, falar em duplo sentido – isto é, num sentido que encobre outro, como se o primeiro fosse a aparência e o outro a essência, um a tática e outro a verdade, um a superfície e o outro a profundidade. O correto seria falar em dois sentidos, num mesmo plano hierárquico, reciprocamente se iluminando. Assim, no disco “O político” da coletânea Chico Buarque Cinqüenta Anos, há canções das quais um ouvinte desavisado, ou não-brasileiro, ou apenas ignorante do contexto em que surgiu a obra, poderia dizer que seriam músicas de amor, de alguém descontente com a namorada. (Deve ser este o caso de quem, hoje, jovem, sem ter passado pela ditadura, as ouve). Apesar de você bem poderia expressar um descontentamento com quem, autoritariamente, nos separa do amor: um pai repressor, por exemplo. Poderia ser apenas um drama da vida privada, e o discurso explícito da música, aliás, retoma os lugares da intimidade e da vida pessoal.
Sabemos que é uma alusão ao regime militar, que “você” é um ditador ou o regime como um todo. Mas Apesar de você, com todo o seu teor político, não está tão longe de Trocando em miúdos, em que o falante lamenta a separação da amada, e pede de volta o livro de Neruda, o disco de Pixinguinha. Nos dois casos temos uma rejeição que ocorreu, uma disposição a uma vida melhor, só que no primeiro sabemos que se fala da ditadura e no outro que é o fim de um amor. Finalmente, quando Chico canta “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta” (Jorge Maravilha, assinada por Julinho da Adelaide), isso pode perfeitamente significar – e provavelmente é assim que se entende hoje – que o pai da namorada não aprova o rapaz que está cantando. O rumor dos anos 70, porém, dizia tratar-se de uma alusão ao general Ernesto Geisel, cuja filha dissera, aos jornais, que gostava do compositor, nisso discordando do pai ditador [8].
Esse duplo sentido – ou esses dois sentidos – aparece(m) assim com enorme freqüência. Contudo, não é um duplo sentido que gere humor, e isso embora haja humor em Chico Buarque. Talvez, para que o duplo sentido engendre o riso ou pelo menos o sorriso, seja necessário um descompasso entre si e si, como o que há no humor, sobretudo britânico, por exemplo, que é auto-crítico numa escala talvez inigualável. Mas esse descompasso interior a si próprio, essa fratura, essa beância que permite a tal humor eclodir, nada disso é importante em Chico Buarque, e talvez não seja importante justamente porque sua questão consista em criar o compasso.
Embora eu seja um completo leigo em matéria de solfejo e de ritmo, atrevo-me a dizer que o compasso, em Chico, é justamente a questão: como se faz a conjunção, como se faz que essa multidão cante, como se faz que a banda dê certo, que depois que ela passar nada volte ao seu lugar – que, ao contrário, a banda efetue realmente uma transformação, com o advento daquele samba tão imenso que eu às vezes penso que até o tempo vai parar para ouvir: a eternidade advindo na rua, na praça, no espaço público em que o afeto eclode, e eclode porque de repente, sem se saber por quê, consegue-se a plena presença de si a si, e de cada um a cada outro.
O tema da banda reaparece em outras músicas. Vai passar, por exemplo, é uma Banda bem sucedida. Vai terminar a ditadura, ou terminar a infelicidade, a desigualdade social, a iniqüidade: o que há de ficar será a enorme euforia. E isso depende da conjunção do social com o pessoal.
Se tomarmos a década anterior à de Chico, ou seja, a dos anos 1950, quando prevaleciam o bolero e as músicas pré-MPB, havia uma significativa intensificação do eu. As canções de Nelson Gonçalves, digamos, conseguiam enorme sucesso com base na primeira pessoa, na chave da intimidade, do individual. Aliás, numa sociedade bastante conservadora, as músicas abriam espaço para uma imagem da mulher – mais livre para dar ou retirar seu amor, mas também mais infeliz, pagando o preço de sua liberdade – que os costumes ainda não admitiam. Esse papel que era o do boêmio e em menor escala o da mulher livre antecipava, na arte, o que a vida iria mais tarde manifestar, quando esse homem e essa mulher, de personagens mal vistos ainda que desejados, se tornariam freqüentes na experiência social, deixando o vinil para entrar na vida.
Ora, o que teremos em Chico Buarque será a conversão – sempre recíproca, sempre em duas mãos – do íntimo e do pessoal no coletivo e no social. Naquela época, a censura atuava de maneira implacável, no plano tanto estadual quanto federal – e por isso mesmo o duplo sentido funcionava como recurso dos mais eficazes para fazer as músicas chegarem ao público. O sucesso de Chico está ligado a isso: o duplo sentido foi um recurso comum naqueles anos, mas para nosso compositor ele não era um recurso, um meio, uma ferramenta, e sim uma maneira de ver o mundo. Não há nele um uso instrumental do duplo sentido, como nesse grande humorista que foi Ary Toledo. No fundo, o uso cômico do duplo sentido é relativamente simples. No final da ditadura, Jô Soares, num de seus melhores momentos, apresentou – de 1978 a 1982 – um espetáculo intitulado Viva o gordo e abaixo o regime. Como ele sempre fez farto uso de sua própria gordura como tema hilariante, havia obviamente um sentido próprio, imediato, que era o do gordo que não suporta mais privar-se dos prazeres, como lhe impõe um regime de emagrecimento. Mas todo espectador decifrava um segundo sentido, o da crítica ao regime militar. Uma chave simples assim constrói todo um espaço cômico bastante eficaz. Com a vantagem que tem o duplo sentido, de oferecer ao espectador a orgulhosa sensação de ser inteligente: como ele é convidado – o tempo todo – a traduzir o que é dito numa linguagem explícita, manifesta, para um sentido implícito, latente, o mínimo que se pode concluir é que ele se sente tradutor, intérprete. O humor do duplo sentido é bilíngüe, eis a sua inteligência. Como a cifra é simples, e a tradução pronta, a inteligência requerida não é muita, mas mesmo assim proporciona satisfação ao público.
O que Chico Buarque põe em cena no tocante ao duplo sentido é, contudo, algo muito diferente: uma convicção muito profunda de que o político está fundado no afeto, de que o político só tem sentido se partir do afeto. Daí que seu duplo sentido não forneça material ao riso. Em sua obra, o duplo sentido nunca aparece pela negação de um lado pelo outro, ou pela diferença entre um e outro de seus aspectos: o que ele tematiza é sua desejada e possível, embora difícil, convergência. É por isso que não dá para traduzir todo o pessoal em político. É por isso que as obras sobrevivem mesmo quando se perdeu, para uma nova geração, o referente explicativo. É por isso, mais que tudo, que elas expõem um ideal – não apenas a crítica ao existente, mas um forte ideal: o de que a política se funde no açúcar, no afeto. Aqui está a utopia de Chico Buarque, e seu lirismo.
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Chegamos assim ao paradoxo da utopia. Comentei, no início, que utopia lírica é uma contradição. Remontemos então à Utopia, de Thomas Morus, essa obra escrita em duas etapas, entre 1515 e 1516. A narrativa, que o autor atribui a um fictício navegante português, Rafael Hitlodeu, mostra uma sociedade ideal, cujo traço principal se pode chamar a geometrização não só do espaço físico, como de todo o âmbito social. Sabemos que não há projeto utópico, sobretudo no século XVI, que não passe por uma teoria urbanista. A utopia surge quando se decide construir a cidade a partir de um plano. A cidade utópica, seja a ilha de Utopia na obra de Morus, seja a Cidade do Sol, sejam as outras versões que correram desde então, sempre se mostra ligada a uma divisão do espaço, freqüentemente circular, e de todo modo planejado. Aliás, lembremos que Utopia, o nome e a ilha, surgiram quando o remoto rei-filósofo Utopus cortou o istmo que até então a unia à terra firme; a ilha data dessa época, bem como o nome de Utopia.
Como as instituições de Utopia se devem ao mesmo homem que alterou a geografia, a nominação e a ordem social, vê-se que tudo vem junto. Não há trabalho sobre o espaço que seja puramente técnico; todo urbanismo remete a uma sociologia, a uma leitura e a uma proposta do social. Tem-se a idéia de que, planejando-se a cidade, será possível planejar a vida. Em suma, a organização justa da vida humana se associa à organização de uma cidade.
O escritor cubano Severo Sarduy comentou, em Escrito sobre un cuerpo [9], que foi nessa época que as cidades deixaram de ser visualizáveis a partir de um simples olhar. Por volta de 1400/1500, diz Sarduy, surgem as plantas das cidades, muitas vezes considerando o espaço urbano a partir de um morro. Num canto externo da cidade há uma forca, com ou sem o corpo do supliciado; também se vêem algumas pessoas; mas o importante é a idéia de desenhar a cidade. Segundo Sarduy, desenha-se a cidade a partir do momento que não é mais possível descortiná-la com o olho nu, ou seja, quando ela escapa à imediata captura pelo olhar.
Acrescento: é partindo deste momento, em que se desenham as cidades realmente existentes, que se concebem, também, as cidades utópicas. Representa-se a cidade real quando ela se torna de certo modo opaca, intraduzível, incompreensível à espontaneidade humana – quando ela requer uma cifra, um roteiro. E isso vale também para a cidade ideal. É porque a cidade real não é mais óbvia, e exige uma explicação, que se possibilita a cidade do desejo, da filosofia, da idéia e do ideal: a diferença é que num caso a cifra explica, e no outro ela imagina, pensa e constrói. O zoon politikon vai recuar, até ser explicitamente negado por Thomas Hobbes, e em seu lugar a dimensão política e também a social serão vistas como produtos do homem, explicitamente contratadas por ele. O natural cede em face do artificial. O próprio ser humano passa a ser considerado como produzido, melhor dizendo, como auto-produzido. É nesse novo mundo que tem sentido, e lugar, a utopia, e é por isso que ela é essencialmente representação, melhor dizendo, representação geométrica.
Ao ser representação geométrica, a utopia vai organizar o espaço e planejar uma recriação justa do mundo. Notemos que a geometria terá a maior importância, um século depois, como a ciência que irá revolucionar todo o saber. No século XVII, se geometrizará tudo o que é ciência, até a política, embora esta última sem sucesso duradouro, com Thomas Hobbes; de todo modo, geometrizar a filosofia e a ciência, com Descartes, abre a revolução da modernidade. Mas um século antes disso houve a geometrização do espaço urbano a que me refiro, e isso significa também – o que merece ser realçado – que a utopia inicialmente é científica. Se hoje nós opomos uma visão utópica a uma visão científica, essa oposição nada tem a ver com a utopia, tal como ela surge no século XVI. Ao contrário, se a utopia pode ter essa base geométrica, racional, é justamente porque ela é o que há de mais científico. Leiamos Thomas Morus; sua tese básica reza que a infelicidade é gerada pela propriedade privada. Por conseguinte, se a suprimirmos pela raiz, teremos a felicidade humana e a justiça. Essa tese é extremamente racional e científica, e é o que dá sentido à geometrização do social.
A utopia deixa de ser ciência desde o século XIX, e essencialmente desde Marx e Engels, que escreveu, este último, um opúsculo de título Do socialismo utópico ao socialismo científico [10]. É quando o socialismo científico se cinde da utopia ou da poesia. Talvez isso, a longo prazo, permita que a utopia, abandonada pela ciência, se torne lírica; mas o que esse processo causa de imediato é que a utopia se torne épica. Teremos assim, desde o século XIX, uma certa divisão de águas entre uma esquerda que vai dizer-se científica e, por conseguinte, apostará na economia como fator básico para a compreensão e metamorfose do mundo, e outra esquerda, que vai propor utopias, basicamente de eixo poético, mas sempre com um sujeito coletivo, e por conseguinte épico. Um exemplo disso é a imagem que quase abre o filme Novecento, de Bertolucci, e que serviu de pôster kitsch para inúmeras pessoas de esquerda, preenchendo seus espaços quer íntimos, quer públicos, ao longo dos anos 70 e 80: uma multidão de camponeses caminhando, indignados, portadores do futuro, em nossa direção [11]. Contudo, essa divisão entre a esquerda épica e a científica não é bem clara. Os mesmos movimentos compartilham os dois enfoques: veja-se, nos partidos comunistas, a constante referência às bases científicas da teoria marxista (o PC português chegou, em 1974, após a Revolução dos Cravos, a adotar uma “Resolução Científica”, porque entendia que suas tomadas de posição estavam baseadas no melhor da ciência social, o marxismo) que se acompanha da existência de ideólogos, inclusive oficiais, de secções ideológicas, da alusão à luta ideológica. A distinção entre as duas esquerdas parece remeter à separação, difícil de se manter no plano político, entre ciência e ideologia. Em suma, a ciência (ou essa ciência do social) exige ideologia, talvez justamente porque, em seu cerne, esteja a ideologia.
A utopia assim – seja ela poética (e épica), seja científica – bloqueia o eu. No conflito entre o indivíduo e a sociedade, fica com esta última. Não tem como dar espaço à liberdade pessoal ou individual. A felicidade decorrerá de uma rearticulação do sistema, não das escolhas que cada um efetue. Daí que a questão da escolha seja depreciada, reduzida a um desdenhado individualismo, e temas como o do planejamento e o da felicidade adquiram importância bastante grande. Aliás, a felicidade utópica curiosamente opera mediante uma redução dos prazeres – ou, o que dá na mesma, pela exaltação dos prazeres simples, como a água pura e límpida, nunca o álcool.
Um importante desdobramento desse processo, no final dos anos 50 e no começo dos 60 – ou seja, quando Chico Buarque está enfim à beira de se tornar o compositor que hoje é – está na construção de Brasília. Brasília é nossa utopia – e é uma utopia geométrica. Arremata, num nível superior, uma série de projetos urbanos do Brasil Central, que incluem Araçatuba e Goiânia, de ruas retas em chão plano. No projeto de seus autores há uma idéia de justiça social: na mesma superquadra iriam morar todos os que trabalham na Petrobrás, do presidente ao contínuo. Haverá então uma metamorfose do espaço, em que as pessoas vivem, como um fator para a metamorfose social. Era comum, entre os arquitetos dos anos 60 e mesmo dos anos 70, pensar que, colocando a cozinha no meio da sala, se romperia a separação entre o trabalho manual e a propriedade da casa, integrando-se a empregada na família, integrando-se a dona de casa na conversa, rompendo-se a desigualdade social, rompendo-se a desigualdade no lar. Todo um universo utópico passou por essa urbanização, e a ele certamente Chico Buarque não foi infenso, estudante que era, à época, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Mas o curioso, nisso, é a utopia lírica. O contexto de Brasília, a referência à esquerda permitiam cogitar uma utopia épica, que foi, por exemplo, a de Disparada. Essa utopia épica talvez tenha tido a sua mais próxima concretização no Brasil com o projeto da capital federal. Ora, o projeto de Brasília fracassou, na sua idéia de integração social, até pelo fato de que o isolamento geográfico da cidade facilitou, a partir de 1964, a tomada do centro do poder pelo estamento militar. A integração faliu devido ao isolamento. Muitos pensam, e me incluo entre eles, que numa cidade na qual a sociedade tivesse mais forte organização própria – Rio de Janeiro, São Paulo – teria sido mais difícil a manutenção da heteronomia por tanto tempo, a substituição das lideranças civis pelas militares, a clonagem técnica e bélica do poder político. Uma cidade que era somente a capital, exclusivamente a sede do Estado, longe das manifestações que teria no Rio de Janeiro, que além de sediar os poderes era uma cidade de vida própria, ou em outras cidades poderosas, favoreceu – mesmo que não tenha causado – esse afastamento entre Estado e sociedade. Assim, o que é muito irônico, aquilo que era para ser uma reforma da sociedade a partir da reorganização do espaço urbanístico acabou se tornado uma maneira de se retirar o Estado de qualquer pressão da sociedade.
Talvez essa ruína da utopia brasiliense nos anos 60 responda, ao menos em parte, pela liricização da utopia no projeto de Chico Buarque. Talvez: esta é uma hipótese. Vamos a ela.
Se a utopia ainda é uma organização do social, essa tarefa implica uma saída de cena da primeira pessoa, portadora da lírica. As utopias geralmente rumam para uma democracia unanimista, em que todos convergem, gestando uma primeira pessoa coletiva, que absorve as três pessoas clássicas do discurso, eu, tu, ele/ela [12]. Ora, na utopia de Chico o unanimismo está presente. Há, sim, adversários ou inimigos (já no título de Apesar de você...), mas são, nos dois sentidos do termo [13], desprezíveis. Conseguida a vitória, no afeto e na política (Apesar de você) ou na sociedade (Vai passar), o opositor à alegria coletiva simplesmente desaparece. Mas – e aqui está a diferença de Chico Buarque em face da temática utopista – o coletivo de que se trata é movido pelo amor. O fator que liberta é a intensificação dos elementos amorosos ou afetuosos. Seria fácil dizer que eles são elementos da vida privada, mas prefiro não usar esse termo, porque enfatiza demais uma oposição à vida pública e além disso assume, em nosso meio, uma conotação pejorativa. Será melhor falar em vida íntima ou pessoal, porque assim se dissipa qualquer insinuação de que no horizonte dessa vida esteja o dinheiro, a propriedade, o fechamento sobre si. Ao contrário, pulsa aqui a idéia de que esses sentimentos possam transbordar e exercer forte impacto social. O lírico, o afetivo, o amoroso, é o que há de mais fecundo no universo.
Chegamos assim a um paradoxo final: como podemos pensar uma ordenação do mundo, que é a utopia, a partir da transgressão? desde o momento em que um casal decide dançar, em que uma banda atravessa a cidade, em que Eros toma a frente. Como podemos fazer isso, se a utopia é o reino da regra ou da lei? Lembrem que, na Utopia de Morus, a pessoa casada que passear pelo campo sem a permissão do príncipe e do seu cônjuge é condenada à morte. Lembrem que a utopia de Morus não é de forma alguma o reino da liberdade pessoal ou da efusão dos sentimentos: ela é um lugar em que a regra funciona, irrestrita, perfeita. Ora, a dimensão que analisei da obra de Chico Buarque enfrenta o problema de como fazer essa unanimidade ser feliz, mas isso passa por um recuo da lei, no seu teor repressor, e por um investimento do mundo da utopia pelo afeto, pelo amor, pela transgressão. Com isso, ele valoriza o que há de melhor na utopia, mas para fazê-lo é preciso desfazer-lhe o caráter autoritário, aparentado com o projeto épico, e investir no lirismo. É, pelo menos, uma grande novidade, e que a meu ver continua inspiradora.
[1] Já levantei este tema em meu artigo “A palavra democrática ou da utopia da necessidade à palavra poética”, que abre o dossiê A palavra democrática, no número 37 da Revista USP, por mim organizado e dedicado ao tema dos Direitos Humanos no Limiar do Século XXI (São Paulo, 1998, p. 102-7).
[2] O teatro tinha, na época, importância social maior do que em nossos dias. Parte substancial da classe média ia assistir às peças em destaque. O Grupo Oficina, o Teatro de Arena e outros conseguiam, não só um público regular, mas uma presença na sociedade que dificilmente hoje algum grupo atinge. Não foi por acaso que um dos eixos da crise política e cultural de 1968, que culminou no Ato-5 e na guerrilha, passou pelo teatro. E, assim, apesar de incomodados pelos espetáculos, muitos “burgueses” continuaram indo assistir a eles por todo um tempo – assim como continuamos assinando o jornal a cujo layout nos afeiçoamos, mesmo depois que deixamos de gostar de seu conteúdo.
[3] Negativo: porque sua moralidade constitui mais em renúncia e abstenção, do que em positividade e ação. É com um não que começa cada um dos dez mandamentos.
[4] Este ponto é importante. De modo geral, a mudança do mundo para melhor, em Chico Buarque, é fruto do inesperado. Ele mostra o seu como, os seus efeitos, eventualmente sua curta duração – mas não expõe por que se deu. (A Banda, Valsinha).
[5] Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, Cinquième promenade, Paris, Garnier/Flammarion, 1964, p. 101. Há tradução brasileira. Aqui, procurei ser o mais literal possível.
[6] Cf. Barthes, Le plaisir du texte, Paris, 1973 – em que realça a importância do prazer, a seu ver o grande desprezado de nosso mundo. O desejo, diz ele, obtém suas cartas de nobreza (possivelmente assim responde a Deleuze e Guattari, que no Anti-Édipo, então recentemente publicado, haviam elogiado o desejo, contra a carência). O prazer, não. Com isso, Barthes não retorna à carência ou à falta, mas apenas valoriza o prazer, como o que se dá no instante – é como se ele radicalizasse a crítica à carência, portanto.
[7] Sugeri essa idéia de ímã semântico em meu livro A Democracia (São Paulo, Publifolha, 2001, p. 55): “Isso mostra – penso – como a democracia se tornou, no último meio século, um termo tão positivo que assume sentidos adicionais bem além de sua rigorosa definição filosófica. (Diria que ela funciona como um ímã semântico, atraindo outras palavras, que se enriquecem reciprocamente).”
[8] Não importa a veracidade ou não do caso. O que importa é que a recepção da época foi essa, e que era plenamente autorizada por esse trânsito constante entre o político e o amoroso.
[9] Severo Sarduy, Escrito sobre um cuerpo: Ensayos de crítica, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1969.
[10] Há várias edições em português, entre elas São Paulo, Global, 1984. Também se encontra traduzido sob o título Socialismo utópico e socialismo científico, São Paulo, Atena, 1892.
[11] Em nossa direção, e na direção do futuro: somos portanto identificados ao porvir.
[12] Em A democracia (São Paulo, Publifolha, 2001, pp. 53-66), desenvolvi esta oposição entre democracia da unanimidade e democracia da diferença. Num caso, que se realiza sobretudo na imagem que temos das grandes revoluções históricas (mas que, por sinal, pouco corresponde ao que elas efetivamente foram), supõe-se que praticamente todos estejam de acordo quanto à via a tomar: a Revolução Francesa, as diretas-já, os cara-pintadas contra Collor. No outro caso, há democracia justamente quando a diferença se torna valor preponderante, aceitando-se como legítimos os dois lados.
[13] Dois sentidos de desprezível: um, qualitativo, o que não merece apreço ou respeito, o indigno; outro, quantitativo, o do que representa um número muito pequeno, que nem precisa ser levado em conta. O que está fora do grande e bom coletivo é pouco e é de pouco valor.
Caros colegas e professor: como tenho o hábito da leitura no monitor, recorri ao e-book da "Utopia" de More, em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2301. Infelizmente não há quase nenhum detalhe sobre a tradução, e não imagino se ela é boa. Alguém tem alguma pista - ou sabe de alguma boa edição, online ou para download? Seria bem mais conveniente, neste momento.
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