sexta-feira, 10 de setembro de 2010

As duas instâncias do desejo

Em nosso último encontro, na medida em que o professor Renato discorria sobre a temática do desejo e do prazer em Reich, vinha-me à mente Proust, em seu "Em Busca do Tempo Perdido" e a relação conflituosa com o desejo por Albertine. Se Albertine está ausente, ele sofre e deseja ardentemente seu retorno. Mas quando ela lá está, ele se entedia. Não é preciso ler Proust para entender esta dinâmica. Qualquer pessoa pode fazer o exercício de se lembrar de algo que deseja muito e intensamente, recordar-se da sensação de profunda alegria por conseguir o que se almejava, e dar-se conta do imenso tédio que tomou o lugar da alegria com o tempo. Pode ser um amor, um trabalho, um objeto, tanto faz: "matar o desejo" dá lugar apenas a outro desejo. Por isso, soam-me tão esquisitos os votos de aniversário: "espero que você realize todos os seus desejos" - se isso ocorresse de fato, o que haveria depois? Qual o sentido em viver se todos os desejos estão realizados?

Seria esta a essência do desejo? Amar enquanto ausência e nos entediarmos na presença? Schopenhauer, se tivesse lido Proust, provavelmente tomaria seus romances como exemplo. Em A Vida como Vontade e Representação, escreve o filósofo: "A vida oscila então como um pêndulo, da esquerda para a direita, do sofrimento para o tédio". O sofrimento é o desejo do que não se tem, e quando se tem eis o tédio. Eu acho tudo isso muito budista, mas, enfim, Schopenhauer bebeu diretamente desta fonte (e assumiu). E, penso eu, Reich também, com suas idéias aparentemente doidas e meio hippies sobre "energia vital" (doidas, é claro, a partir de uma perspectiva ocidental). Eu sou muito inclinado a crer que os utopistas e suas teses, ainda que incidentalmente, convergem para o pensamento oriental (acho que já deu pra perceber que eu penso isso). A utopia nasce como o Sol, no oriente... o problema é quando chega no oeste!

Se o desejo é falta, é ausência, as perspectivas não são realmente muito boas, pois a felicidade jamais se alcança. Está sempre aldilá del mare, em tudo aquilo que não temos, não possuímos, não vivenciamos. É sempre o "como seria bom se...", e assim seguem os [des]encontros das relações humanas, até a última realização desejante: a morte, quando tudo é ausência. Se só desejamos o que não temos, não temos o que desejamos e estaremos sempre "em busca de", vazios, e nossa angústia na verdade não tem rosto - é o sentimento de falta que acompanha o existir.

Todavia, muito embora eu aprecie especialmente o pensamento de Schopenhauer, acho que ele carregou demais no peso de sua leitura. Será que somos tão infelizes assim? Se ele tivesse total razão (a não ser que eu tenha entendido mal o que ele diz), parece-me que seríamos mais infelizes do que talvez sejamos. Ocorre que não desejamos apenas o que nos falta, desejamos também o que temos. Ora, eu continuo desejando estudar Filosofia, e muito embora não sinta o tempo inteiro a alegria que senti ao ser aprovado no teste de seleção, e ainda que eventualmente possa sentir tédio em alguns momentos, o desejo se sustenta. Poderíamos dizer o mesmo a respeito de nossos romances, trabalhos e tantas outras coisas.

O tédio só vence se não aceitamos o entendimento de que não podemos ter tudo. É impossível se relacionar com todas as pessoas interessantes que existem no mundo e que poderiam ser, potencialmente, nossas namoradas. É impossível realizar todas as coisas que existem em nossa imaginação.

Tenho a impressão que muitas vezes as pessoas fazem uma pequena confusão entre "desejo", "esperança" e "vontade". O desejo está na esperança e na vontade, mas esperança e vontade não são a mesma coisa, muito embora no uso coloquial da língua portuguesa nós costumemos estabelecer esquisitas relações de sinonímia entre uma coisa e outra, indevidamente. O desejo do "espero que" não é o mesmo desejo do "tenho vontade de/que". A esperança se refere ao que não depende de nós, é mera expectativa impotente, depende do acaso. A vontade, ao contrário, é um desejo que depende de nós. Vale aqui lembrar o que diz Sêneca a Lucílio, em seu "Cartas a Lucílio" (o primeiro livro de autoajuda - de bom nível - do Ocidente): "desaprenda a esperar e eu o ensinarei a querer".

Não é de se espantar que Spinoza não via a esperança como virtude. Chamava-a de "impotência da alma", e a via como irmã siamesa do medo (afinal, só há esperança quando há, igualmente, receio de sua não-realização, ou da realização de seu exato contrário). Os estóicos, por sua vez, viam a esperança como um pathos.

O homem sábio, por sua vez, só deseja o que depende dele e de seus atos volitivos. É muito frustrante "esperar" por justiça, paz, igualdade, "esperar" pela melhoria do mundo. Cômodo e desapontador.

Dito isso, se há diferença entre o desejo na esperança e na vontade, que diferença poderia haver entre "paixão" e "amor"? Poderíamos arriscar dizer que a paixão se refere ao irreal: ao que não temos, ou que acabamos de conseguir, mas ainda não conhecemos muito bem. A paixão é sempre por causa de.

O amor, por sua vez, refere-se ao real. É o que se revela com o tempo, e é sempre apesar de. Nos apaixonamos por causa da beleza, da inteligência, do carisma do outro, mas se amamos é apesar de seus eventuais defeitos e facetas desagradáveis. Amar não é esperar, não é "esperança". Amar é des-espero, no sentido do que não se espera, mas efetivamente é.

É possível desejar o que se tem? Parece-me que sim, é perfeitamente possível. Pode ser difícil, na atual conjuntura das coisas, em que somos instados continuamente a trocar objetos funcionais por outros apenas pelo sabor da novidade. E se fazemos isso com celulares e roupas, o que se dirá de nossas relações humanas? O pensamento de que "a grama do vizinho é mais verde" parece a porta certa da infelicidade. Não se trata de contentar-se com pouco, ou não querer lutar pelo melhor, mas de entender que não se pode ter tudo. E muito menos pautar a felicidade na esperança, que, conforme denuncia Spinoza em sua Ética, é uma impotência.

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Aparte digressivo: deu-me vontade de recomendar Doris Lessing, que merecidamente ganhou o Nobel de Literatura no ano de 2007. Lessing é uma escritora versátil que, num dado momento de sua carreira, criou excelente ficção científica. Um de seus livros, chamado "Os Casamentos entre as Zonas 3, 4 e 5", fala de um intercâmbio entre pessoas de mundos diferentes. O que chama a atenção neste livro é que a diferença fundamental entre um planeta mais evoluído e outro menos evoluído não é a tecnologia. São as relações humanas. No mais evoluído dos planetas, o amor não é uma propriedade privada. Não há sentimento de posse, ciúmes, nada parecido, até porque nenhum de seus habitantes sente "esperança" - o que não significa que o planeta seja promíscuo! Há apenas um intenso "agora", de encontros absolutamente transparentes, sem recalques. O planeta de Lessing é a utopia de Reich! Se ficaram curiosos sobre, eis o livro:
http://www.cienciamao.usp.br/tudo/exibir.php?midia=fic&cod=_oscasamentosentreaszonas34e5
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IMPORTANTE: não esqueçam de ver os avisos do professor Renato sobre nossos trabalhos de conclusão de curso, nos posts anteriores a este!

2 comentários:

  1. Muito bom o texto!
    É sempre bom lembrar ao mundo a questão do desejo como falta e da vontade como responsabilidade em "realizar" o que se pensa desejar.
    Uma perspectiva otimista é sempre benvinda no mundo filosófico.. hehehe

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  2. Uau!!!
    Que delícia de conhecimento... que delícia de homem que vc é amigo! Sou grata a tais atos altruístas como os seus...
    É tão bom poder dividir nosso saber com a humanidade, vc é sempre referência na minha vida, te admiro.
    Vou partir para as "Considerações nietzscheanas".
    Abraçando-o com carinho!
    Inté.

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